O tesouro da Netflix que pouquíssimas pessoas assistiram Matt Nettheim / Netflix

O tesouro da Netflix que pouquíssimas pessoas assistiram

Os filmes de zumbi são uma excelente maneira que o cinema encontrou para levantar discussões acerca da degradação do meio ambiente, da perversão dos costumes, da desesperança atávica do gênero humano, que se entrega gostosamente ao primeiro salvador que lhe aparece, mas depois não tem a menor ideia de como fazer para reaver sua própria vida depois.

Martin Freeman literalmente leva a humanidade nas costas em “Cargo” (2018). O drama australiano de Ben Howling e Yolanda Ramke erige uma alegoria poderosa ao aludir à disseminação de uma moléstia contagiosa que faz com que quem a contraia seja forçado a, gradualmente, abdicar de sua condição de ser humano. Entram em cena a atração incontrolável por carne crua (e se de outra pessoa, tanto melhor), o aspecto monstruoso, a insensibilidade a luz e a ruídos — todos os chavões desse tipo de narrativa —, mas aqui o argumento do autossacrifício em nome de uma causa que se entende nobre ganha novo fôlego, mérito de Martin Freeman e de uma grande parceira.

Quando o filme tem início, o planeta já está tomado por algo que se acredita ser um vírus. Apesar do cenário apocalíptico, Andy, o protagonista vivido por Freeman, mantém unida sua compacta família, e se não soubesse que o mundo vive sua pior catástrofe, até poderia dizer que é feliz: Kay (Susie Porter), sua mulher, e Rosie (as gêmeas Lily-Anne e Marlee Jane McPherson-Dobbins), a filha do casal, continuam a salvo da nova ameaça, a respeito da qual ainda não se sabe o bastante. Mas eles não têm mais casa, têm de se deslocar de uma estância a outra numa balsa à cata da parca comida que puderem conseguir, os rios estão cada vez mais empestados, aqueles que sobrevivem desenvolvem uma mentalidade pautada pela paranoia, por nunca terem certeza do quão mais de tempo poderão usufruir sem serem vitimados, além de serem obrigados a encarar qualquer indivíduo como alguém que quer lhe beber o sangue. Um lugar nada salubre para se criar um filho.

Como não poderia deixar de ser, o cerco se fecha. Kay é infectada, transmite o vírus ao marido, e 48 horas depois, acaba não resistindo. Da mesma forma que no sul-coreano “Invasão Zumbi” (2016), dirigido por Yeon Sang-ho, restam só um pai e sua filha indefesa tendo se virar num imenso pântano, repleto de criaturas perigosamente hostis. Mas não para sempre: ao passo que se empenha para conseguir um possível antídoto para a infecção, Andy deve procurar um meio de resguardar a filha, confiando-a a alguém que seja capaz de amá-la tanto como ele. E só dispõe de dois dias para tanto.

Malgrado o homem já estivesse em franco processo de extinção, ainda existe quem queira se dar bem de algum modo. Essa é outra das premissas ocultas nas entrelinhas caudalosas de “Cargo”, que não renuncia ao propósito de, mesmo num filme de zumbi, falar sobre temas não muito assíduos em todas as produções do gênero, como compaixão, perseverança, dignidade e fé. O começo arrastado — talvez voluntariamente, a fim de fazer os menos comprometidos desistirem logo — é substituído por um eixo maciço, que bate na tecla do escatológico, do mundo por se acabar, do homem sempre impossibilitado de fazer a escolha mais conveniente (ou menos nociva), à luz do pensamento schopenhaueriano. O personagem de Martin Freeman, conduzido do jeito mais doce possível num globo dominado pela descrença acerca de qualquer valor, uma vez que a morte se instalara, e com ela toda a sorte de relativismo moral, não se furta a demonstrar seu desconforto e mesmo seu pânico em muitas circunstâncias, todavia saiba que tem por dever natural proteger sua filhinha custe o que custar. É Rosie quem o move na direção dos aborígenes, estrato social altamente marginalizado na Austrália, e o faz subjugar seus próprios preconceitos a fim de vislumbrar alguma possibilidade de redenção para seu bebê.

A exploração da imagem do pai sozinho que passa a ser o único responsável pelo bem-estar de sua filha pequena, subvertendo o cânone do homem como mero provedor de sua prole, sem a necessidade de envolvimento afetivo mais aprofundado — e em muitos casos, esse distanciamento emotivo no modo de ser masculino é encarado como desejável, ainda hoje —, por si só tem a força que muitos textos escritos sobre o mesmo assunto não têm. Rosie está sempre onde Andy está, malgrado seja verdade que ele não tem nenhum poder quanto a garantir um bom futuro à menina. Nada inclinado a dar lições sobre o que quer que seja, “Cargo” é somente uma história singela, delicada, despretensiosa, comovente, de um pai tentando proteger uma filha. Os zumbis são meros adornos.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.