Não há nada tão assustador quanto a realidade e os mistérios que encerra. Ao longo da vida, vamos nos deparando com situações tão esdruxulamente medonhas que nos assalta o pensamento quanto a se estar no centro de um pesadelo que deixara a esfera da inofensiva imaginação e passara a habitar a esfera do mais concreto da existência, compondo um cenário extraordinariamente perigoso. Manter-se vivo se torna um desafio constante, cada segundo representa uma barreira a ser superada e alcançar o fim da jornada quer dizer ir muito além do limite do suportável, condição para a qual nem todos estamos preparados, reservas de que certamente não desejávamos ter de dispor e a renovação da fé tola porque irracional, mas imprescindível porque salvífica de que o jogo há de virar. Alimentar-se desse sentimento, tomá-lo em pílulas, como o remédio milagroso que há de reviver alguém já desenganado, é o único meio de não se ficar pelo caminho, atropelado pelos fatos depois que tudo já foi dominado pela angústia, reerguer a cabeça em seguida a mais um golpe e voltar a se pretender livre outra vez.
“Sequestro em Cleveland” (2015) se desdobra entre três personagens, mas conforme a história ganha corpo, a diretora Alex Kalymnios prefere se concentrar mesmo é na exposição de uma delas, justamente a que reúne todos os aspectos que ensejaram o conflito em que se baseia a trama. Em 2002, Michelle Knight, uma garota de 21 anos, vai se enterrando em Cleveland, cidade movimentada de Ohio, centro-oeste dos Estados Unidos. Desempregada, sem perspectiva, morando de favor na casa de uma mãe que não faz nenhuma questão dela ali, Knight, alma do roteiro de Stephen Tolkin, personificada pela grandeza do talento de Tyler Cornell. Um dia, ao se cansar dessa sina, a protagonista vivida por Cornell decide sair para procurar trabalho, mas vai já ressabiada, porque tem de confiar a criança à mãe, e algo lhe diz, inspirada pela experiência de tantos anos, que pode não estar fazendo a coisa certa. A entrevista para balconista de uma lavanderia dura muito menos que gostaria porque ela não pôde concluir o ensino médio. Frustrada, ainda mais tomada da melancolia que a assombra há tempos, ela volta para casa e encontra o filho na companhia de um ex-namorado violento, que tenta abusar dela e acaba partindo para cima do menino, que baixa ao hospital. Kalymnios elabora cada lance dessa escalada de eventos de forma a preparar a audiência para o que virá a seguir, dando a impressão de que na vida de sua mocinha não há mesmo espaço para especulações de momentos felizes. Quase instantaneamente — e talvez esse seja o grande defeito de seu filme, a pressa: tudo tem menos de hora e meia para acontecer —, Knight é confrontada com a reviravolta mais amarga de seu destino já tão marcado pelo infortúnio, depois de eventos relacionados ao filho. Está agora nas mãos de Ariel Castro, um conhecido que supunha apenas disposto a ajudá-la, outra boa atuação, de Raymond Cruz. Da mesma maneira que o ex-companheiro fizera com seu filho, Castro investe contra ela, que num piscar de olhos é feita sua refém. Mantida em cativeiro, acorrentada, presa ao teto do quarto imundo em que sofrera o primeiro ataque, Knight passou os doze anos que se seguiram sendo espancada, usada como escrava sexual, humilhada das maneiras mais asquerosas a que pode ser sujeitado um ser humano. Nesse meio tempo, chegam ainda Amanda Berry, personagem de Samantha Droke, e Georgina DeJesus, vivida por Katie Sarife, cada uma reagindo de um jeito específico às intervenções de Castro, que por seu turno também responde de um modo bastante idiossincrásico a cada uma. Berry engravida de seu algoz, e ele se empenha para que dê à luz com a maior segurança possível. Algumas sequências antes, Knight também ficara grávida do facínora, mas ele se empenhara em fazê-la abortar, golpeando-a na barriga com um haltere. Esse argumento passa quase despercebido, mas só ele já se prestaria a um bom resumo do que fora a vida da protagonista até aquele ponto particularmente monstruoso, rejeitada por todos, inclusive por um homem repulsivo como o tipo a que Cruz dá vida. Nessa altura da narrativa, Tolkin aproveita para levantar semelhanças entre as vidas do vilão e de sua vítima e de que modo reagiram ao que a vida fizera de cada um.
O calvário das personagens de Manning, Droke e Sarife, por mais assustador que seja, não é tão incomum. Em “O Quarto de Jack” (2015), Lenny Abrahamson conta a história de uma mulher fora mantida prisioneira por ainda mais tempo, 24 anos, e que, como Berry, também fizera um filho de seu agressor enquanto sua cativa. O filme de Abrahamson fora igualmente baseado num caso real, em que o austríaco Josef Fritzl estuprara a filha por todo esse tempo, privando-a do convívio social. À diferença de Fritzl, ainda vivo e cada vez mais próximo da liberdade, valendo-se de um contraditório indulto humanitário, Ariel Castro enforcou-se na prisão. O filho de Michelle Knight foi adotado por outra família e mudou de nome. Os dois nunca mais voltaram a se ver.
Filme: Sequestro em Cleveland
Direção: Alex Kalymnios
Ano: 2015
Gêneros: Drama/Crime
Nota: 9/10