Novo suspense de ação da Netflix vai te deixar desnorteado Divulgação / Koch Films

Novo suspense de ação da Netflix vai te deixar desnorteado

Se paira sobre a arte em geral a acusação de ser recorrentemente tomada por uma monotonia atávica, ninguém pode dizer que o cinema não se esforça quanto a empurrar essa pecha para bem longe. As maiores transformações sociais já experimentadas pelo gênero humano só foram possíveis quando iniciadas dentro de cada homem, daí ser impossível, à luz do pensamento de gênios como o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920), uma pretensa salvação da humanidade que não passe pelo indivíduo. Contudo, a humanidade só poderia se salvar, efetivamente, se cada pessoa sobre a face da Terra se desse conta de suas faltas, se imbuísse de seus pecados e reparasse seus males, o que configura a tragédia fundamental do ser humano porque isso nunca vai acontecer. Somos responsáveis, cada um em particular, no mais profundo de seu íntimo, por nossa redenção — ou nossa própria desdita —, sendo sempre possível (e desejável), por óbvio, arrependermo-nos, de coração, até o último segundo, tomarmos a estrada mais reta, e começar tudo outra vez, do zero, da melhor forma possível. O cinema tem dado sua colaboração nesse processo, tanto ao propor temas que fomentem descobertas que tocam muito especialmente alguém, como dispondo de personagens que trazem em seu bojo o signo da mudança — malgrado isso não queira dizer que mudem de fato.  

“Instinto Assassino” (2022) pode até não primar pela inventividade, a começar pelo título, mas o filme de David Hackl tem, sim, lances memoráveis. Dentre suas características menos luminosas —  novamente se lança mão de um protagonista jovem passando por problemas com a lei, com a família, diagnosticado com um distúrbio psiquiátrico que o atormenta ao passo que lhe serve de estímulo para se estabilizar de  uma vez por todas e conquistar a chance de que tanto precisa —, está o fato de remexer nas questões que tangem justamente à necessidade de se fazer escolhas, de se optar por ou por outro caminho, pelo bem ou pelo mal. É esse o caso de Dylan Forrester, vivido por Scott Eastwood, o sociopata que ganha liberdade condicional e volta para casa a tempo de participar do funeral do irmão mais novo, Sean. Esse reencontro de Dylan com a vida que não é mais sua vai, claro, desencadear as reviravoltas presumíveis para ele e para quem ele costumava ter como sua família. Hackl aproveita o clima de desarmonia que se vai anunciando conforme seu anti-herói refaz sua jornada, aos muitos custos que só ele mesmo é capaz de estimar, para erigir o argumento da atmosfera de destruição que um tipo como Dylan encerra. Não bastasse sofrer a hostilidade sistemática de todos, a começar da própria mãe, Linda, de Brenda Bazinet, que não lhe permite abraçá-la e em larga medida atribui a ele a culpa pela morte de Sean, o personagem de Eastwood tem de enfrentar a fúria de um esquadrão de mercenários que invade a casa de Linda, numa ilha remota no estado de Washington, noroeste dos Estados Unidos, à procura de um tesouro. Nesse ponto, resta claro que o papel de grande vilão do roteiro de Christopher Borrelli não cabe a Dylan, mas a Cole, interpretado por Kevin Durand, a melhor performance do filme. O candidato a mocinho bem que tenta defender os seus da ira de Cole — temperamento que insinua que decerto há muito mais do que somente a vontade de espoliar os bens dos Forrester —, mas é escorraçado pela matriarca. Só resta a ele se aconselhar com seu psiquiatra, o falsamente empático e também algo psicótico doutor Alderwood de Mel Gibson, enquanto tenta se ver livre do cerco da detetive Shaughnessy, papel de Famke Janssen, uma agente do FBI especialmente dedicada a mantê-lo na linha, ainda mais desconfiada depois que recebe o alerta de que a tornozeleira eletrônica de seu pupilo fora desativada. Até que se dá a grande virada da história.

Essa personalidade de fera ferida de Dylan, rejeitado por todos, inclusive por quem teria por obrigação profissional zelar por ele, vem à tona no fluxo adequado, e Hackl revela-se competente quanto a deslindar aa faces escuras de seu personagem central. A entrada em cena da detetive Shaughnessy se presta a exatamente intensificar o mistério em torno de sua figura, e também o público começa a se indagar se ele é mesmo tão bem-intencionado assim. Scott Eastwood, se nota, ainda tem um longo percurso a trilhar; se se espelhar no exemplo caseiro, do pai Clint, pode-se aguardar que ele também vá mais longe do que suas caras e bocas sugerem.


Livro: Instinto Assassino
Direção: David Hackl
Ano: 2022
Gêneros: Ação/Mistério
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.