O filme da Netflix que vai tirar seu fôlego e te deixar com raiva, triste e feliz ao mesmo tempo Diego Lopez Calvin / Netflix

O filme da Netflix que vai tirar seu fôlego e te deixar com raiva, triste e feliz ao mesmo tempo

Misturar melodrama, revelações que parecem a ponto de subir à superfície de círculos que só se mantêm graças ao mistério e uma dose generosa de sexo — filmado da maneira mais elegante, mas sexo assim mesmo — pode resultar num todo de gosto duvidoso, além de pouco coeso, quase capenga, como uma máquina feita de peças de tamanhos diferentes. No entanto, filmes realizados sob esse padrão, se é que se trata de um padrão, podem apresentar qualidades um tanto interessantes, a despeito, claro, da originalidade. Histórias que encerram tamanho pluralismo tendem a frustrar muito menos a audiência, que não tem a mais pálida ideia sobre o que esperar do enredo, assume essa impressão e faz dela o pretexto para seguir firme até o desfecho. A depender que como cada argumento seja disposto ao longo da narrativa, esse caos dramático torna-se mais e mais orgânico, e caso houvesse algum mal-estar quanto a absorver a essência um pouco mais sofisticada, esse sentimento ter-se-ia dissipado logo à primeira sequência, muito longe do convencional.

Usualidade, definitivamente, não é uma palavra que se aplique a “Árvore de Sangue” (2018). O diretor espanhol Julio Medem se vale de expedientes os mais incongruentes entre si a fim de apresentar seus personagens, como que saídos de um híbrido dos contos “O Aleph” e “A Biblioteca de Babel”, do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), tal é a atmosfera de desordem imanente a reger a trama. Medem narra a trajetória de um jovem casal, Rebeca, interpretada por Úrsula Corberó, e Marc, vivido por Álvaro Cervantes, duas performances que por si sós já valem as mais de duas horas de projeção. Não se tem claro se os dois enfrentam alguma dificuldade no relacionamento; ambos parecem felizes, até realizados, felicidade que faz inveja a qualquer donzela dos folhetins de antanho, no tempo em que havia folhetins dignos desse nome. O diretor é perspicaz ao explorar esse argumento de seu roteiro, momento em que saltam à tela as brincadeirinhas pueris que pares enamorados, mas só os verdadeiramente dominados pela paixão, fazem entre si quando o resto da humanidade silencia diante de seu amor. Todavia, mesmo entre esses seres tocados pela mágica do amor sempre há arestas a serem aparadas, e para o fazer da maneira que creem menos traumática, Rebeca e Marc se propõem escrever um livro a quatro mãos, relatando tudo o que sabem a respeito da história de seus ancestrais. Para se dedicar integralmente ao projeto, e, por óbvio, também para dar uma chance adicional à inspiração, viajam até a antiga casa dos avós da moça, ainda hoje uma bela propriedade, num lugar afastado no campo. Para o melhor aproveitamento da experiência, decidem se concentrar apenas em aspectos íntimos do que possam vir a se dizer, esquecendo política, ideologia ou qualquer outra bobagem quando se trata de sentimento. Por esse motivo, não é nenhuma coincidência que surjam entre os dois assuntos que restavam quase perdidos da vida privada de cada um deles. Doravante, Medem começa a remover o verniz de romantismo incondicional em que se fundava seu longa para imprimir sobre ele a aura propriamente mística, sobrenatural, que passa a caracterizá-lo. Há a menção a cicatrizes nos corpos dos dois, adquiridas em circunstâncias semelhantes e ao mesmo completamente diversas, como se uma força oculta os regesse e os impelisse a continuar juntos, tópico que encaminha a discussão a outra abordagem. O amor dos dois resistiria à entrada em cena de um terceiro elemento, tanto pior se este sobe das profundezas mais nebulosas do passado?

A ascensão do general Francisco Franco (1892-1975) ao poder na Espanha, na esteira da Segunda Guerra Mundial, em 1939, leva famílias desesperadas a “doar” seus filhos, despachados sobretudo à Europa Oriental e à Rússia, em plena cristalização do regime comunista iniciado com a Revolução Bolchevique em 1917. Esse foi o destino de Olmo, personagem de Joaquín Furriel, e Victor, de Daniel Grao, de onde voltam muitos, muitos anos depois. A interposição de Macarena, a ex-roqueira vivida por Najwa Nimri, no caminho dos dois torna a sacudir o enredo, que parecia já definido. Típica rebelde sem causa e filha legítima da alta burguesia europeia, Macarena, luta contra a dependência química ao passo que assume um romance intrincado com um dos irmãos, quando se vê de todo seduzida pelo outro. Ao se descobrir grávida, a personagem de Nimri também se percebe a cada dia mais tomada por pensamentos psicóticos, o mesmo mal que se avulta na vida de Rebeca. Para dar um fecho ao núcleo fantástico do que é narrado, Medem ainda acrescenta à história a figura de Nuria, de Lucía Delgado, cuja vida é colhida por uma tragédia pessoal, passagem que também dispõe de componente dramatúrgico o bastante para movimentar a trama.

Há uma hora em que o conteúdo — sem dúvida caudaloso — passa a ser preterido em favor da apresentação em si, e a fotografia de Kiko de la Rica, vencedor do Goya por “Branca de Neve” (2012), de Rupert Sanders, de tão preciosista, chega a obnubilar a condução da narrativa textual. O espectador se deleita com exemplos em profusão da beleza das pradarias do interior da Espanha, em que De la Rica destaca tons de verde que cintilam à luz do sol outonal do hemisfério norte, ao passo que soluções que caem do azul se avolumam, como o vínculo entre Olmo e Núria, que resta inexplicado, e o fato de também Victor adquirir o vício em entorpecentes.

Malgrado a falta de traquejo pontual, Julio Medem elabora uma novela que se sobressai pela autenticidade. Valendo-se de um neorrealismo mágico suavizado, o diretor faz de “Árvore de Sangue” um trabalho digno de registro, quiçá até pelo simbolismo que abriga.


Filme: Árvore de Sangue
Direção: Julio Medem
Ano: 2018
Gênero: Drama
Nota: 9/10