Suspense com Viola Davis e Robert Duvall que acaba de estrear na Netflix é um filmaço Divulgação / 20th Century Studios

Suspense com Viola Davis e Robert Duvall que acaba de estrear na Netflix é um filmaço

Histórias de crimes se esmeram por cumprir um cronograma. Primeiramente, faz-se necessário apresentar os potenciais delinquentes, o contexto em que estão inseridos, por que suas vidas descambaram para a configuração criminosa e que provável destino terão a partir dessa outra conjuntura, inclinando-se mais para a redenção ou, se confortáveis com a vida marginal, seguem seu turno até um desfecho quase sempre trágico. Depois, compara-se tudo isso à luz da realidade, para se saber se o filme — sempre foi o cinema quem melhor se apropriou desses recursos — não terá sido um tanto imaginativo demais, e não que isso seja necessariamente um problema. Talvez a grande questão em filmes do subgênero refira-se a como vai se dar o processo de assimilação de vilões, anti-heróis e mocinhos, que nesse caso, têm de se conservar cada qual no seu papel. Evidentemente, a toda regra cabem exceções, e do mesmo modo, nessas exceções moram outras boas histórias, que podem convergir para o mote central ou não, sem prejuízo da coesão. De qualquer forma, o resíduo de delírio e instabilidade moral de certas tramas e dados personagens aponta para a evidência inescapável de que, em muitas circunstâncias, fazer o bem ou mal se resume a uma conveniência. Sai do papel o que for mais fácil.

“Viúvas” tem suas inúmeras idiossincrasias, na história em si mesma e na forma de narrá-la escolhida pelo diretor Steve McQueen. Os personagens de McQueen e Gillian Flynn, com quem coescreveu o roteiro, são a cabal representação do que existe de mais falido, de mais putrefato no sistema econômico dos Estados Unidos, noção que vai se desdobrando com muita parcimônia e nas entrelinhas. O filme, uma produção de 2018, incorpora essa ideia por múltiplas frentes, a começar pela da diversão popularesca, despretensiosa, que se presta ao trampolim ideal quanto a expor os questionamentos que julga oportunos. Quando eles, afinal, se materializam, quem assiste é capaz de embarcar para a viagem oferecida pelo diretor sem maiores obstáculos, elaborando seus próprios juízos de valor, de que vai se valer para ter algum indício sobre se vilões e heróis e não seriam faces de uma só moeda. Quase sempre são, e essa dicotomia é que dá sabor especial à maioria esmagadora das manifestações artísticas, mormente as que ganham vida pelas mãos do cinema.

Harry Rawlings, participação afetiva de Liam Neeson, é um ladrão com vasta quilometragem rodada pelo submundo da América profunda, aquela feita de negros afrodescendentes, imigrantes poloneses, latinos, asiáticos, sobretudo em Chicago, onde se estabeleceu com a mulher, Veronica. Logo na abertura do trabalho de McQueen, numa de suas investidas contra o patrimônio alheio, junto com os subalternos Florek Gunner, de Jon Bernthal; Carlos Perelli, vivido por Manuel Garcia-Rulfo; e Jimmy Nunn, de Coburn Goss, Rawlings e seus homens acabam levando a pior num tiroteio com a polícia. Os quatro morrem e, então, chega a hora do diretor apresentar ao enredo as tais viúvas do título, Alice, uma bela interpretação de Elizabeth Debicki; Linda, personagem de Michelle Rodriguez; Amanda, vivida por Carrie Coon; além, claro, de Veronica, que era casada com o chefe da quadrilha. Veronica, mais um papel de fôlego de Viola Davis, se assenhora do filme; tudo o que acontece ou deixa de acontecer em cena passa por ela, que conduz tudo com o talento que já se esperava. Por meio de um caderno guardado pelo marido, ela passa a se orientar quanto a quais seriam os próximos passos de Rawlings, cujo fracasso no roubo lhe custou à viúva mais poderosa do longa uma dívida milionária, que ela terá de quitar. O pano de fundo político, completamente secundário, e uma reviravolta sobre o marido, que escondia dela muito mais do que o valor de suas transações ilícitas, essa, sim, impressionante, conferem ao filme a aura do noir clássico, que cai como uma luva diante da forma pela qual McQueen prefere enumerar o que se vai sabendo. A parceria com Flynn é outro dos grandes acertos do filme. O texto fluido da roteirista, já colocado à prova com louvor em “Garota Exemplar” (2014), dirigido por David Fincher, é capaz de movimentar os acontecimentos sem cansar o público, um detalhe que até pode passar despercebido, mas que provoca um grande incômodo se falta. Os incômodos em “Viúvas” são de outra natureza.


Filme: Viúvas
Direção:
Steve McQueen
Ano: 2018
Gêneros: Crime/Suspense
Nota: 8/10