Etimologicamente, o princípio fundamental da religião deveria ser o de restabelecer a conexão, a ligação com o mundo transcendental, mais e mais enfraquecida diante de um cotidiano que parece a ponto de rebentar devido ao estresse, à ansiedade, a todas as inúmeras intempéries tão próprias da vida contemporânea. Não é trabalho fácil testificar o momento em que a religião descambou de conjunto de códigos de conduta e ordenamento de parâmetros voltados à reflexão do fiel sobre temas decisivos para uma sucessão de ataques orquestrados contra quem ousa não pensar da mesma forma, mesmo restando inabalada a fé em Deus. O caso é que, hoje, para muita gente, a simples menção ao pensamento religioso provoca uma sensação entre incômoda e farsescamente piedosa em muitos interlocutores, como se quem defende — ou mesmo apenas evoca — a necessidade da prática religiosa fosse, na melhor das hipóteses, um alienado, alguém que atribui a Deus soluções para problemas que Ele não criou, ou ao contrário, um covarde, que se vale da figura divina para tentar justificar suas faltas. Na verdade, reações dessa natureza são muito mais frequentes em quem se declara sem religião ou naqueles que dizem não crer em Deus, com a diferença de que, não raro, essas pessoas elegem para o lugar de senhores de suas vidas a bebida, a droga, a compulsão por sexo, por consumo, por prazeres fugazes, os falsos deuses. O único mal da religião são os maus crentes.
A atmosfera sufocante do deserto de Negueve se reflete na vida dos beduínos que o habitam, sobretudo para uma camada da população em especial. Quase prisioneiras de uma religião que, na prática, as oprime em muitos aspectos, as mulheres aos poucos introjetam o comportamento hostil de que são vítimas e o repassam a outras mulheres, a começar pelas próprias filhas. Essa deturpação do conceito de fé religiosa é explorada com brilho pela diretora israelense Elite Zexer, que em “Tempestade de Areia” (2016) expõe os intestinos de uma família que se esfacela devido à obediência cega a uma doutrina radical, que só faz irradiar a tristeza de duas gerações. Nesse universo paralelo mesmo para a cultura árabe, homens são indivíduos especialmente dotados de privilégios, quase divindades, que não só fazem questão de gozar de suas mordomias pretensamente divinais, como também se esmeram em deixar claro às mulheres que os rodeiam que dispõem das poucas vontades, da liberdade tênue, da dignidade constantemente pisoteada e até da vida delas. Assim se comporta Suliman, cuja perversidade cínica é perfeitamente destacada na interpretação de Hitham Omari. Suliman está prestes a se casar com Alakel, de Shaden Kanboura, a segunda esposa — ele e a família são muçulmanos e, o islamismo permite que o homem tenha até quatro mulheres — e cabe a Jalila, a primeira, vivida pela ótima Ruba Blal, ocupar-se dos preparativos da cerimônia. Mesmo humilhada, ela cumpre essa sua obrigação; para ela, a vida resta mesmo perdida e não há mais margem para retorno. Mesmo que no fundo deseje que Layla, a filha mais velha do casal, tenha outro destino, Jalila sabe que o melhor para todos, mormente para a aldeia em que vivem, é que Layla se case com quem o pai mandar, e nesse ponto começa a se deslindar outra discussão. Suliman é tão pouco criterioso na escolha de Munir, de Omar El Nasasreh, que a personagem de Blal, quase sempre exasperantemente submissa, se vê forçada a exigir do marido que “seja homem” e procure alguém melhor. Enquanto isso, o conflito central perde força e cede lugar ao que passa a ser a principal fonte de tensão do roteiro de Zexer.
Malgrado rápida, a subtrama que discorre sobre o envolvimento romântico de Layla com Anwar, o colega de faculdade interpretado por Jalal Masrwa, é fundamental para que se entenda o rumo da história e por que os acontecimentos se encaminham dessa forma. Lamis Ammar consegue transitar com tranquilidade de um lado a outro da narrativa, e não obstante a perspectiva de “Tempestade de Areia” mude, sua protagonista segue nessa condição, de liderar o elenco e o filme. Há espaço para o lirismo num texto tão árido, que parece considerar indispensável ressaltar a secura, tanto das palavras como do ambiente, estranhamente bonito na fotografia de Shai Peleg. O tropo da areia, aparentemente gasto e desinteressante, sobretudo num filme passado no deserto, cresce e logo resta evidente que a poeira de que quer falar a diretora não é a que reveste aquela porção perdida de mundo no Oriente Médio. Além de lutar contra uma pobreza particularmente cruel, fruto em grande medida da esterilidade do solo, Layla e Jalila se veem ainda mais afrontadas por hábitos que não escolheram, a única herança numa terra cuja pujança maior é o retrocesso atávico. Devido, em grande parte, a homens como Suliman.
Elite Zexer parece ter pesquisado de perto a vida dos beduínos ao se decidir a rodar “Tempestade de Areia”. Embora muito bem disfarçada, a religião é decerto a força motriz de seu filme, e talvez sua grande (e involuntário) calcanhar de Aquiles. Zexer recebera críticas acerbas por ser uma judia israelense “atrevendo-se” a dar pitaco no estilo de vida alheio quando em sua própria casa já há tanta desarmonia. O argumento, essencialmente desonesto e fracassadamente capcioso, deixa de lado, de propósito, a evidência de que judeus vem sendo apedrejados há dois mil anos, e agora partilham esse seu status com os cristãos — em especial no Oriente Médio, que os defensores do justo, do bom e do belo adoram incensar, ainda que se ufanem de sua ignorância quanto à intrincada história que o envolve. Ainda que tivesse errado muito, o que não é o caso, “Tempestade de Areia” é um trabalho, no mínimo, corajoso, e só quando se depara com uma produção como essa é que se tem a certeza de que é necessário mais gente disposta a encampar uma batalha como a que encerra, não menos. Até que, quem sabe, o inesperado nos presenteie com alguma bonança.
Filme: Tempestade de Areia
Direção: Elite Zexer
Ano: 2016
Gênero: Drama
Nota: 9/10