O filme da Netflix que te levará para dentro dele, impiedosamente, e não te deixará sair até o segundo final Katherine Fairfax Wright / Netflix

O filme da Netflix que te levará para dentro dele, impiedosamente, e não te deixará sair até o segundo final

Talvez nunca se pare de fazer filmes sobre a redenção ou a sua busca, com personagens cujo carisma vai muito além da aparência, que conhecem direitinho os meios para encantar o espectador e se equilibrem um tanto negligentemente entre a conversão total e uma maldisfarçada ânsia por retomar os velhos hábitos se as circunstâncias o favorecem e, claro, o exigem. É justamente esse senso de  humanidade que imprime a certos filmes aquela sensação que todo mundo com mais de quinze anos conhece, a de se perceber um pouco menos desgraçado do se é na verdade, avaliar que o diabo não é tão feio quanto se pinta — embora toda distância a que se estiver dele seja pouca, por mais resistente que se apresente a alma, dada a fraqueza da carne — e, então, ter a certeza de que por ser luta renhida de todo dia, a vida vale a pena. Chegar a essa conclusão pode levar um minuto ou a vida toda, sem a menor garantia de saia daí alguma coisa que se aproveite, e a tempo de fazer a diferença, por mínima que pareça. Também por isso histórias como a de “Sonhos Imperiais” merecem atenção.

Lançado em 20 de janeiro de 2014, quando venceu o prêmio do público no Festival de Cinema de Sundance, o drama urbano de Malik Vitthal retrata o submundo pelo qual Bambi é perigosamente cercado. O personagem, interpretação também digna de láureas de John Boyega, acaba de ser solto depois de dois anos cumprindo pena por agressão, e volta a Watts, subúrbio ao sul de Los Angeles, onde (não) o espera o filho Dayton, de quatro anos, vivido pelos gêmeos Justin e Ethan Coach, largado na casa de Shrimp, o tio de Bambi, personagem de Glenn Plummer, junto com a avó, Tanya, de Kellita Smith. Uma família imperfeita como qualquer outra, sem dúvida, não fosse o fato de Shrimp ser o maior traficante de drogas do lado sul do condado e Tanya, uma viciada em crack já desenganada. É comovente a reintegração quase instantânea entre Bambi e Dayton, e que bom que tenha sido assim, uma vez que Samaara, a mãe do garoto, papel de Keke Palmer, permanece na cadeia, a poucos alguns quilômetros da rua onde Shrimp manda e desmanda, sem medo da vigilância constante do detetive Hernández, interpretado por Maximiliano Hernández, e sua parceira, Gill, de Sufe Bradshaw, especialmente dedicados a manter Bambi na linha. E ele precisa mesmo de todo freio moral — e estímulo — que puder. 

Determinado a seguir a carreira de escritor, relatando a vida dura a que está habituado — dono de uma prosa fluida, sem o abuso das gírias dos guetos, mas ao mesmo tempo seca na medida, ele tem mesmo talento e chegou a publicar um conto na McSweeney’s, editora independente de San Francisco —, Bambi tem de, primeiro, se haver com a realidade. Ganhar dinheiro é uma urgência e a proposta de Shrimp, por mais indecorosa é tentadora: quatro mil dólares para levar uma carga de oxicodona, uma droga sintética, para Portland, porque seu filho Gideon, bom desempenho de um De’Aundre Bonds metido em confusões reais algum tempo depois, está jurado de morte depois de ter assassinado uma criança por acidente num tiroteio durante uma festa. Como ele, depois de muita tergiversação, se recusa, o tio o expulsa a ele e a Dayton de casa; os dois vão bater à porta de Wayne, o meio-irmão mais novo do protagonista vivido por Rotimi Akinosho, que por estar aos poucos seguindo por um caminho novo e promissor ao poder frequentar a faculdade de administração graças a uma bolsa parcial de estudos, também não se mostra muito comovido com seus problemas. Bambi acaba tendo de morar com o filho dentro do carro velho com que costumava rodar Los Angeles à cata de emprego, se esmerando por esconder o garoto da assistência social que, por evidente, não considera que aquelas sejam as circunstâncias mais edificantes para se criar um filho. Mas ele tem outra escolha?

Essa última subtrama talvez seja a mais importante. Por meio dela, Vitthal e o corroteirista Ismet Prcic projetam “Sonhos Imperiais” para além do argumento surrado de negros jovens e suburbanos inexoravelmente implicados com drogas e toda a conjuntura que isso encerra — negligência parental (além de Tanya ser uma drogadita crônica, súbita e farsescamente reabilitada no ato final do longa, nunca se ouve nada a respeito do pai de Bambi), abandono, loucura —, e se concentra nos esforços que o protagonista passa a encampar quanto a ter a guarda com o filho. A briga com Shrimp, que degringola na sequência mais conflituosa do enredo e, claro, a obstinação de Bambi em fazer com que uma grande editora receba seus textos, tomam o lugar do pano de fundo sociocultural e miram, acertadamente, o indivíduo, seu livre arbítrio, mesmo envolvido numa espiral de impedimentos, de agir como se deve. Espécie de releitura muito mais tensa de “À Procura da Felicidade” (2006), de Gabriele Muccino, “Sonhos Imperiais” também se volta à ideia do destino como um monstro transcendental a atormentar o homem, mas que não resiste à persistência de um homem frágil, mas tinhoso. Deus mora nesses detalhes.


Filme: Sonhos Imperiais
Direção: Malik Vitthal
Ano: 2014
Gênero: Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.