O suspense, na Netflix, que vai paralisá-lo do início ao fim Divulgação / DreamWorks

O suspense, na Netflix, que vai paralisá-lo do início ao fim

Um bom suspense sabe como transitar entre a constância e a instabilidade de seus personagens e, o principal, é capaz de tirar o proveito necessário de uma e outra situação. Se a ação de súbito se torna serena demais, em o filme sendo bom, o espectador pode ter quase certeza de que algo de muito nefando está por vir; se a narrativa desembesta, os eventos se sucedem e a história dá a impressão de sair dos trilhos irremediavelmente, também é momento para que o diretor intervenha, como um deus ex machina o mais discreto possível, e deixe claro que o bom andamento da trama está assegurado. Esses altos e baixos pelos quais ninguém espera são a diferença precisa entre uma história protocolar, simplória, ordinária, e o legítimo clássico, que o passar dos anos só ajuda a cristalizar como um instante de brilho invulgar de um diretor inspirado, habilidoso, que ratifica a grandeza de seu ofício, que se vale de argumentos aparentemente banais para, com muito jeito, transformar pedras sem valor em brilhantes finos, impossíveis de se ignorar. Essa facilidade de reinventar o que já se havia estabelecido e extrair do todo uma matéria nova é uma das muitas faces do talento. Quiçá a mais sublime delas.

Wes Craven poderia muito bem acionar o piloto automático e deixar que “Voo Noturno” se levasse sozinho, chegando ao destino que chegasse, com resultados mais ou menos previsíveis, convicto de que o percurso teria apenas as turbulências de costume, a aterrissagem poderia requerer um pouco mais de cautela, mas também não seria mistério algum, e todos restariam vivos, são e salvos diante da iminência de uma catástrofe. Quanto a essa última parte, nada mais certeiro: no filme de Craven, levado à tela num já nebuloso 2005, é proibido morrer, e mesmo na sequência final, em que banhos de sangue são mais que recomendados, ansiados com

indisfarçada consumição por parte da audiência, só morre quem deve morrer — e é possível defender o palpite de que poucos deem por isso. Grande parte do mérito cabe à performance cirúrgica de Rachel McAdams, que ao longo da carreira foi desenvolvendo um dom todo especial quanto a saber escolher a que pontos de um personagem angustiado deve se dedicar com atenção redobrada e o que pode (e muitas vezes deve) ser relegado a segundo plano. Já havia sido assim no ano anterior em “Diário de Uma Paixão”, dirigido por Nick Cassavetes, e continuou em “Meia-Noite em Paris” (2011), de Woody Allen. Em “Voo Noturno”, Lisa Reisert, a mocinha da vez, passa cerca de dois terços da hora e meia de duração do longa a um palmo de distância de Jackson Rippner, o psicopata vivido por Cillian Murphy com igual vontade de repelir clichês quase inexequíveis, tendo de lidar com a grande responsabilidade de administrar todas as emoções mais básicas de uma pessoa — ódio, ira, indiferença, desprezo, repugnância, amor —, afloradas sobretudo em ocasiões de tensão máxima como a que enfrenta, a fim de garantir que o pai, Joe, de Brian Cox, não seja morto por um sujeito que o tem sob a mira de um fuzil do outro lado da rua da casa em que moram sabe Deus por quê. Lisa confia em seus sentimentos, em seus instintos; prefere crer que o pai seja o homem amoroso com quem mora desde o fim do casamento dos pais, embora se depreenda que nesse angu haja caroços difíceis de engolir. No meio da brincadeira, toma mais uma traulitada. Está em curso um plano para executar Charles Keefe, o vice-secretário de Segurança Interna dos Estados Unidos, uma participação afetiva de Jack Scalia, de passagem por Miami. Keefe vai se hospedar no hotel em que a personagem de McAdams é a chefe dos recepcionistas e coube à pobre Lisa autorizar a mudança de quarto do figurão, para que o serviço, também comandado pelo antagonista de Murphy, se torne à prova de falhas.

A propósito de falhas, “Voo Noturno”, por óbvio, não é perfeito. Além do mistério a pairar sobre a figura do pai, que decerto tem algum envolvimento com o atentado que se quer perpetrar contra o alto funcionário do governo, nunca esclarecido, resta patente um amadorismo inverossímil na figura de Rippner, um terrorista muito pouco talhado para a missão que lhe confiam. Descontada a licença poética, a liberdade criativa do roteiro de Carl Ellsworth e Dan Foos, o propósito de assassinar Keefe é de uma inconsistência pueril, opta por falsas soluções que só fazem desembocar em mais enroscos e privilegia justamente as variáveis que poderiam botar tudo a perder, como Lisa, o que acaba acontecendo. As sequências no avião são muito bem filmadas, os enquadramentos pelos quais Craven opta são tão bem pensados que em muitas ocasiões ninguém se lembra de que aquilo é um corredor de plástico e borracha envolto por toneladas de alumínio, tamanha a sensação de liberdade — quando dever-se-ia ter procurado o exato oposto. Decerto o melhor do pior de “Voo Noturno” é realmente a força do estranho casal composto por Rachel McAdams e Cillian Murphy, que por seu turno só fortalecem a aura de segredos de polichinelo do longa de Wes Craven, que tira de letra esses detalhezinhos mínimos graças ao modo irretocável como encaminha a história para o final, feliz, mas sem exageros.


Filme: Voo Noturno
Direção: Wes Craven
Ano: 2005
Gêneros: Thriller
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.