Um dos filmes mais amados pelo público na história do cinema do século 21 volta ao catálogo Netflix Zade Rosenthal / Columbia Pictures

Um dos filmes mais amados pelo público na história do cinema do século 21 volta ao catálogo Netflix

O homem só pode ser feliz se tiver condições de buscar a felicidade. Segundo o postulado iluminista, governos só existem para asseverar ao homem o sagrado direito de correr mundo até realizar todas as suas aspirações, das mais básicas às que o restante da humanidade julga mero capricho, mera demonstração pueril de frustrações não realizadas, recalcadas pelo tempo, de que lança mão de quando em quando a fim de justificar novos fracassos e protelar o sucesso a que poderia chegar por outros meios. Fracassos e sucessos encerram frequentemente o nome de um país, um país sem dúvida singular. Em que outro lugar do mundo o direito ao sonho estaria assegurado por lei se não nos Estados Unidos da América, a terra das oportunidades por excelência, a terra em que, teoricamente, todos partiriam de igualdade de condições e, assim, à custa de alguns percalços e de muita hesitação, estariam aptos a chegar aonde quer que tenham desejado, mesmo os indivíduos aparentemente menos competitivos? Em que outra parte um homem negro, pobre, desempregado, e sem-teto teria assegurado seu direito a uma vida melhor, manifestado já na sua Declaração de Independência, em 4 de julho de 1776?

É nessa atmosfera de otimismo voraz que o diretor italiano Gabriele Muccino quer envolver o público. Desabridamente idealista, onírico, “À Procura da Felicidade” é uma exaltação ao sonho, ao delírio, quiçá à loucura, tudo com métodos milimetricamente estudados e de eficiência comprovada — não por acaso, o filme continua a ser campeão de bilheteria em workshops e palestras de motivação empresarial para multimilionários e pés-rapados com algumas contas a acertar com o destino (por motivos diversos, evidentemente) mais de década e meia depois de lançado, num já longínquo 2006. O mais intrigante é que a história contada por Muccino nada tem de original, talvez justamente porque inspirada na vida como ela é, feia, intransigente, dura, cruel, tanto pior se se atravessa um ciclo de pequenas tragédias pessoais que, claro, redundam em perda da capacidade laboral e em episódios de transtornos mentais de maior ou menor intensidade. Que atire a primeira pedra aquele não sofreu por apuros de dinheiro.

“À Procura da Felicidade” se presta ao testamento da vida de Chris Gardner, um homem comum que se esmera por não permitir que a família passe pelas privações de uma pobreza que se torna dia a dia mais iminente, mais acintosa, mais indigna. No início dos anos 1980, a América atravessa uma de suas raras — mas sempre muito severas — crises financeiras, com direito a pronunciamento do presidente Ronald Reagan (1911-2004) em cadeia nacional de televisão. Alguma coisa em Gardner, interpretado com o brilho e o carisma habituais de Will Smith, diz que é hora de lustrar os sapatos, escovar o terno quase puído e se preparar para bater perna porque, se ao contrário, preferir jogar a toalha, vestir o pijama e esperar pelo cheque da Previdência Social, o fantasma da fome e do desespero pode mesmo se materializar. O roteiro de Steven Conrad abusa do bom-mocismo de Smith — muito tempo antes do lamentável episódio na cerimônia de premiação do 94° Oscar — em que o ator reagiu com, digamos, orgulho viril um tanto exacerbado à piada infame do comediante Chris Rock sobre a alopecia da mulher, Jada Pinkett-Smith — a fim de remover do protagonista qualquer possível verniz ideológico que, definitivamente, não caberia. Como o destino apronta mesmo das suas, foi nessa ocasião que Smith foi, afinal e com justiça, laureado com a estatueta de Melhor Ator em reconhecimento a sua performance no drama de família “King Richard: Criando Campeãs”, dirigido por Reinaldo Marcus Green, em que vive o protagonista, Richard Williams, um pai que se igualmente desdobra para garantir um pouco mais que apenas o bem-estar das filhas, as tenistas Venus e Serena Williams, incensadas e com fornidas contas bancárias. Como Gardner hoje.

Como este é um filme que retrata o amor paterno, Linda, a personagem de Thandiwe Newton, é retratada como uma megera, mas é impossível esquecer que Gardner, um sonhador incorrigível, gastara todas as economias da família em geringonças pseudocientíficas e obsoletas, como o tal scanner que, se tudo desse certo, venderia com uma boa margem de lucro aos médicos com quem entabula conversa, graças a sua simpatia e com a ajuda de Christopher, o filho de cinco anos vivido por Jaden Smith, filho de Will. Não por acaso, restam apenas os dois na história, até que uma reviravolta elaborada por Muccino com todo o cuidado explica a atual situação econômica de Chris Gardner. Uma prova de que na América um sorriso de dentes afiados pode fazer alguém subir muito alto.


Filme: À Procura da Felicidade
Direção: Gabriele Muccino
Ano: 2006
Gênero: Drama
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.