Para muitos, a metafísica é o nada absoluto: o homem não veio de lugar algum, vem à luz e ao morrer, não lhe resta mais nenhuma alternativa além dos vermes. E, claro, há os que dizem que a metafísica, ao contrário, se refere à um ser sobre todos os seres, uma espécie de matéria impalpável a reger a vida, tanto material como a do espírito. A metafísica, o mais caro legado de Aristóteles (384-322 a.C.), é a ciência de tudo; enquanto cada campo do conhecimento humano dedica-se ao estudo de determinada ciência, a metafísica compreende a ciência como um todo, um saber particular e universal, que paira sobre todas as descobertas do homem sobre a Terra. Aristóteles antecedeu o filósofo Andrônico de Rodes ao classificar os seus estudos acerca da metafísica de filosofia primeira, ou seja, um arrazoado de conhecimentos livres da prática e mesmo da mera percepção carnal. Metafísica e filosofia seriam noções correlatas, haja visto que a filosofia é o estudo do ser na sua condição primeira, isto é, a filosofia se debruça sobre a natureza das coisas e sua forma de se ordenar, independentemente do querer do indivíduo e do mundo físico. Para entender melhor todos esses conceitos, a Bula organizou uma seleção quatro filmes que trazem à luz a vastidão do espírito do homem valendo-se da ideia de metafísica. Na lista, “Pieces of a Woman” (2020), de Kornél Mundruczó; “Dunkirk” (2017), de Christopher Nolan; “O Quarto de Jack” (2015), de Lenny Abrahamson; e “Noah” (2014), de Darren Aronofsky. Os filmes foram elencados do mais recente para o mais antigo e não seguem nenhuma outra norma de classificação.
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É muito difícil um casamento resistir à perda de um filho — e o casal que consegue tal proeza pode reivindicar essa vitória. Ao se sobrepor à vida, a morte reafirma seu inesgotável poder sobre os homens, por mais escondida que esteja. A frustração, a tristeza, o desespero de ver morrer um filho, a vida tendo desrespeitado seu sentido mais primevo, é o que se absorve da maneira mais brutal em “Pieces of a Woman”. Ao espectador, é concedido o direito de observar de perto — perto demais — o trabalho de parto de Martha Weiss, ao longo de sombrios 25 minutos — e só ao fim dessa agonia o nome do filme surge na tela. Com essa decisão artística, o diretor Kornél Mundruczó quis fazer o público tomar parte no tormento da personagem principal, fazê-lo perceber que havia uma vida se abrindo para o mundo e essa vida, por alguma razão, escapou. Martha é absorta por uma espiral de sentimentos múltiplos: a alegria fugaz de se sentir mãe logo é substituída por um luto que se prolonga na vida da protagonista indefinidamente, estado do qual ela não consegue se livrar, e que vai impactar de modo decisivo seu relacionamento com o marido, Sean, e a mãe, que reconhecem sua dor, insistem para que ela redescubra o prazer na vida, mas não sabem como persuadi-la, e metem os pés pelas mãos. Sean, em particular, passa a demonstrar uma ligeira indiferença, primeiro pelo sofrimento da companheira, depois pela própria Martha, que por sua vez perde completamente o interesse pelo parceiro. O roteiro faz com que se entenda que também ele padece com a tragédia, mas que isso não lhe serve de licença para sua covardia. Enquanto isso, Martha se desintegra ao ponto de nem ostentar mais qualquer coisa de humano. Torna-se uma criatura algo transcendental, como um espectro que ronda a matéria que lhe compunha, ansiando por voltar àquele corpo, impressões que a audiência só nota graças ao espantoso talento de Vanessa Kirby. Sua Martha Weiss é um dos retratos mais pungentes de um personagem em sua condição mental, uma mulher despedaçada que possivelmente nunca volte a estar por inteiro outra vez, ainda que o final empenhe uma promessa de felicidade.
Com “Dunkirk”, Christopher Nolan conseguiu duas verdadeiras proezas. A primeira foi entregar um filme absolutamente distinto do que vinha apresentando em trabalhos a exemplo de “Batman: O Cavaleiro das Trevas” (2008) e “Interestelar” (2014). Por aí, já se vê que Nolan é um diretor plural e ambicioso, mas a cereja do bolo está mesmo aqui. Sua segunda façanha foi ter imprimido tamanho realismo e dramaticidade numa história carregada de significado. O filme conta, com o rigor intelectual necessário, como se deu o resgate de mais de 300 mil soldados britânicos na costa francesa, completamente sitiados pelas tropas de Hitler. Só o número de figurantes necessários para se emprestar credibilidade às sequências já é uma epopeia à parte, mas a força do talento de Nolan dá conta do recado direitinho. Sem nenhum exagero, “Dunkirk” comprova que Christopher Nolan se superou frente a todos os seus excelentes trabalhos anteriores e produziu a obra definitiva sobre operações militares arriscadas no decorrer de uma guerra. Os cinéfilos esperamos que ele seja vencido.
Existem histórias tão inverossímeis que só poderiam mesmo ter saído da pena da própria vida. Dada a precisão do roteiro, o diretor Lenny Abrahamson parece ter pegado um filme prontinho, mas era justamente aí que residia o problema. Baseado no romance homônimo de Emma Donoghue, publicado em 2010, “O Quarto de Jack”, a força do enredo está na palavra. Cinema é palavra também, claro, mas é muito mais imagem, por óbvio. Abrahamson venceu o desafio ao optar pelo minimalismo da cena e voltar as baterias ao desempenho da excelente Brie Larson e do formidável Jacob Tremblay, mãe e filho enclausurados depois que Joy, a personagem de Larson, é sequestrada aos 17 anos por um maníaco que se aproxima dela pedindo-lhe que socorresse o seu cachorro. Dois anos e muitos abusos depois, Joy engravida e dá à luz o Jack do título, nascido no quarto em que são mantidos em cativeiro pelo criminoso, que se faz conhecer apenas pelo apelido, Velho Nick. Tudo o que têm são um ao outro e é cortante observar a estreiteza dos laços que os unem. A única ideia que Jack tem acerca do mundo se forma a partir das imagens de uma televisão velha. Nada para ele é real, apenas a mãe, já que nem a si mesmo consegue ver, por não existir sequer um espelho no cubículo. Imaginar que tudo aquilo possa ter acontecido de fato é asqueroso; tanto pior se sabemos que o livro de Donoghue se fundou no caso de repercussão internacional de uma adolescente que enfrentara o mesmo calvário que a personagem de Larson, com a agravante do Velho Nick da vida real ser Josef Fritzl, responsável por aprisionar a filha durante 24 anos. Quando resgatada, a garota era mulher feita e havia engravidado do pai reiteradas vezes. Fritzl se matou na prisão. Joy também consegue se ver livre de seu inferno particular, graças a um plano cuja participação de Jack é vital. Crianças têm o condão de ser (quase) sempre adoráveis e é o que também se observa com Tremblay, que conquista o público sem o menor esforço. A partir do segundo ato, quem reluz mesmo é a intérprete de Joy. É impressionante a compreensão que Larson tem do papel, dando-lhe a profundidade necessária. A readaptação à antiga vida se revela muito mais difícil do que ela pensava e lhe demanda uma boa dose de esforço quanto a exorcizar alguns fantasmas mais obstinados. A entrevista que Joy concede a um programa de grande audiência, sugestão do advogado da família — à custa de um gordo cachê —sai pela culatra. A âncora pesa a mão nas perguntas, Joy não digere bem o episódio e tenta o suicídio. Aos poucos e podendo contar com o carinho de Jack, da mãe e do marido dela, a protagonista vai dando a volta por cima, até que a sequência final dá a entender de que Joy e Jack, aos trancos e barrancos, foram felizes para sempre.
Autor nenhum consegue adaptar uma obra literária para o cinema de maneira inteiramente fidedigna. Sempre há que se fazer uma ou outra correção de rota, a fim de tornar fílmica uma narrativa pensada exclusivamente para o papel. O caso se complica o seu tanto em se tratando de textos religiosos, independentemente do teor místico do que vai ali escrito, seja em que religião for. Em “Noé”, Darren Aronofsky se desdobra sobre alguns versículos do livro do “Gênesis” a fim de extrair deles um épico dotado de fúria, toques de psicologia e o máximo de rigor histórico que consegue. Sua interpretação da parábola do dilúvio, cercada de lirismo e fantasia, é digna de figurar como uma das grandes passagens do cinema. O diretor banca suas ideias, a despeito de elas serem ou não rentáveis para a indústria. Russell Crowe dá vida ao Noé que boa parte do inconsciente coletivo conhece, um homem de princípios sólidos e incorruptíveis, filho direto da linhagem de Adão e Eva. Deus, indignado com o que o homem tem feito da Sua criação, decide começar tudo do zero. O expediente de que Ele lança mão para isso é um dilúvio que irá durar quarenta dias e quarenta noites, a fim de não restar pedra sobre pedra. Para salvar os animais – puros por natureza, mesmo as feras predadoras, que o são só porque seguem seus instintos — e a descendência humana, Noé é incumbido da hercúlea tarefa de erguer uma arca pantagruélica, no intuito de abrigar todas essas criaturas e sua prole. O enredo de Aronofsky é dividido em três atos, e cada qual tem o condão de representar uma fase da trama. Noé peregrina rumo à montanha habitada por Matusalém, personagem mítico que, segundo as Escrituras, teria vivido quase mil anos e seria o patriarca da humanidade; seguem-se os instantes anteriores à catástrofe e a situação irremediável dos ímpios, em polvorosa. Este ponto da saga se conclui com a reclusão de Noé e sua família na arca, até que as águas sequem. Aronofsky é pródigo em se aprofundar na psique de tipos angustiados e obsessivos, como em “Cisne Negro” e “Pi” e tirar dali a razão mesma para a história que está sendo exibida: Noé foi o escolhido por Deus porque certamente seria o único capaz de entender Seus desígnios sem maiores conflitos existenciais. Ele cumpre a missão, guardando para si qualquer sombra de pavor ou dúvida. Pode-se especular um pouco a respeito da índole do personagem-título ao se analisar o comportamento de seus familiares, escanteados na história original. É por meio deles que o público enxerga em Noé a sua dimensão humana, frágil, errante como qualquer outra, mas empenhado em sua missão, decerto apreensivo com o que será do mundo depois da daquela resolução divina o seu tanto drástica, o que o espectador claramente percebe.