O que seria do cinema sem seus personagens marginais? Flertando abertamente com o perigo, com o crime, esses tipos têm o condão de tomar a preferência, ainda que não passem de ilustres coadjuvantes, dando uma rasteira no elenco principal. Como filmes são manifestações artísticas singulares, acontece de dois personagens centrais, igualmente desajustados, lutarem por sobressalência numa narrativa, e tanto mais se a história se estende por cenários em que, originalmente, não poderia se encaixar.
“A Princesa da Yakuza” (2021) talvez tenha propósitos que ao espectador não cabe alcançar. No introito, o diretor Vicente Amorim opta por incluir uma inscrição na tela a fim de esclarecer que o roteiro de Fernando Toste e Kimi Lee toma corpo em São Paulo, mais precisamente na Liberdade, bairro que concentra o maior contingente de japoneses fora do Japão do mundo. Essa é só uma mostra pequena do que Amorim vai descortinar ao longo de 111 minutos, tentando fazer o espectador absorver o elevado grau de complexidade do enredo, o que nem sempre consegue.
O diretor acaba por transformar seu filme num pastiche de histórias em quadrinhos ultrapassadas já na década de 1970. Certo, pode-se contra-argumentar que na arte nada está jamais acabado, restando sempre a possibilidade de um criador louvavelmente ousado se valer de idiossincrasias que só ele mesmo conhece e injetar sangue novo em determinadas abordagens, inventando algo que até então ninguém sonhou ser verossímil. Para tanto, contudo, é necessário sofisticação, arrojo de pensamento, fluidez de linguagem. Essa tentativa de fundir Brasil e Japão num só todo, de saída arriscada, morre no ovo, justamente por causa da falta de originalidade da proposta, sem mencionar, outra vez, o ruído semântico, que redunda em poluição estética. O curioso é que “A Princesa da Yakuza” é inspirado em “Samurai Shiro”, romance gráfico concebido pelo brasileiro Danilo Beyruth, publicado selo DarkSide Graphic Novel, da editora DarkSide Books, em 2018. Isto é, deveria soar como novidade. Deveria.
Vicente Amorim é um cineasta que prima pela diversidade em sua obra. Em seu longa de estreia, “O Caminho das Nuvens” (2003), Amorim falava das agonias de uma pequena família que deixa a Paraíba rumo ao Rio de Janeiro de bicicleta — talvez dizer que tivesse sido em lombo de jumento soasse fantasioso demais num princípio de século que se enunciava especialmente promissor, ainda que a pobreza severa assolasse cidadãos de tal forma que lhes tirava até os pobres burricos; como se viu, a promessa de dias melhores, em particular no Brasil, conduzido por alguém que se dizia um homem do povo e encerrava um messianismo vulgar, mas sempre campeão de bilheteria, fez água —; transcorridos onze anos, sua protagonista foi a religiosa católica Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes (1914-1992), a Irmã Dulce, no filme homônimo, uma biografia muito bem conduzida, capaz de equilibrar-se entre o caráter hagiográfico de um trabalho como esse e a necessidade de afastar a monotonia que adviria dessa sua natureza, adicionando-lhe dramaticidade na medida. No caso de “A Princesa da Yakuza”, seu desempenho não vai além do previsível.
Neste seu trabalho mais recente, os personagens centrais, Akemi e Shiro, têm algo em comum: a busca por explicações sobre um passado que paira sobre eles como uma maldição, porque desconhecido. Neta de um gângster já morto, Akemi, interpretada por Masumi, e Shiro, de Jonathan Rhys Meyers, o sujeito misterioso sobre o qual o público só sabe que chegou ao hospital em que permanece algemado a um leito portando uma espada, têm as histórias confrontadas entre si, como se Amorim os dispusesse frente a um espelho. Aos poucos, vai-se descobrindo que a tal espada de Shiro pertencia ao avô de Akemi, jurada de morte pela Yakuza, uma facção da máfia japonesa, uma das mais poderosas (e cruentas) da Ásia. O público não-iniciado ou que não nutre predileção especial por autores de pulp fiction, a ficção em formato mais popular, demora a entender o que teriam a ver os personagens de Masumi e Rhys Meyers, estranhamento agudizado com a inclusão de mais figuras sombrias como os delinquentes que infestam a Liberdade e aterrorizam o cidadão comum, mas enchem a boca para falar de honra e altivez. Entre eles, Kojiro, vivido por Eijiro Ozaki, obcecado por Akemi, e o anti-herói Takeshi, de Tsuyoshi Ihara, cansado de guerrear nas batalhas erradas, como aquela em que, junto com Akemi, se envolve no patético combate a dois sujeitos vestidos com macacões amarelos, à Bruce Lee (1940-1973).
Os fãs de mangás, animes, graphic novels e que tais encontrarão em “A Princesa da Yakuza” verdadeiro maná para sua fome de outros pontos de vista sobre um assunto que muitas vezes parece esgotado. Todavia, os japoneses que moram em São Paulo decerto terão reservas quanto ao filme de Vicente Amorim, que deixa implícito que são gente sem muita personalidade. Espero não ter usado de sutileza em demasia.
Filme: A Princesa da Yakuza
Direção: Vicente Amorim
Ano: 2021
Gêneros: Ação/Suspense
Nota: 7/10