Premiado em Cannes, filme brasileiro na Netflix é tão impactante quanto ‘Na Natureza Selvagem’ Divulgação / Damned Films

Premiado em Cannes, filme brasileiro na Netflix é tão impactante quanto ‘Na Natureza Selvagem’

Aceitar o mundo como o conhecemos, ao mesmo tempo em que temos a capacidade de rumar para outras vidas, em que as circunstâncias mais absurdas são o que pode haver de mais corriqueiro, sempre foi uma constante na vida do ser humano, que se vale do artifício a fim de, em largando tudo, abandonar sua própria vida e acessar o mais obscuro de seu espírito, no intuito de apreender o cenário em que está inserido e, assim, conduzir sua vida de uma maneira mais adequada. Por óbvio, surgem percalços no caminho, as coisas saem do terreno do previsível e os enfrentamentos são inevitáveis. Todos queremos, em algum momento da vida, fugir ou, ao menos, escapar para uma alguma parte em que sabemos que não seremos pegos, não seremos importunados nem por nós mesmos, tão ocupados estaremos em nos manter vivos. Nada mais desafiador que tomar nas mãos a própria existência e entender que nós mesmos temos a responsabilidade pelo que é feito de nós, e a partir de então, não poder mais negar a evidência de que somos de fato só o resultado de nossas escolhas, como diz a voz rouca das ruas, que por seu turno refletirá em como pode ser nossa jornada.

“Gabriel e a Montanha” é a tradução perfeita da alma jovem que anseia por alguma sorte de libertação. Está tudo ali: sonho, desejo, necessidades, carências, objetivos e ilusões. Não sei se foi essa a intenção do diretor Fellipe Barbosa, aclamado, como sói acontecer — sobretudo no Brasil —, por “Casa Grande” (2015), seu filme de estreia. Lançado dois anos depois, em 2017, “Gabriel e a Montanha” revive as memórias de Gabriel Buchmann, de 28 anos, um mochileiro que ousou afrontar a imprevisibilidade da natureza e pagou com a própria vida. Buchmann decidira permanecer um ano peregrinando pelo continente africano, o que de fato conseguiu, o que se revela um consolo para o espectador, que parte nessa odisseia com ele, endossa sua avidez de ir muito além da África e se apoderar do mundo inteiro, o incentiva a dar sempre mais um passo, ainda que possa acabar se arrependendo. Barbosa tem se mostrado hábil em dissecar as frustrações e as falsas utopias de meninos da classe média das metrópoles brasileiras que se cansam de como se lhes vem apresentando a vida e tratam de dar uma guinada em seu destino, malgrado a aventura, a exemplo do que se dá com o protagonista, termine melancolicamente. Já o havia feito em “Casa Grande” e a escolha de um enredo como o que “Gabriel e a Montanha” encerra, roteirizado por ele, Lucas Paraizo e Kirill Mikhanovsky, ratifica essa vocação. A crítica social é uma constante em seu trabalho e por meio dela, cuidadosamente diluída numa narrativa que prioriza estender-se sobre a individualidade de seu personagem central, o diretor chega onde quer, expondo as peripécias de Buchmann ora como arroubos de um menino mimado e rico, que não sabe como chamar a atenção e se presta às sandices que o filme documenta, ora sob a forma de um grito de independência, dado no momento certo e no lugar preciso. Entender a dialética por trás desse homem, saber que esse é o combustível de que se abastece para se manter no controle permissivo de si mesmo, admitir que Gabriel Buchmann é um espírito livre de verdade, para o bem e, principalmente, para o mal é o único jeito pelo qual desenvolver alguma empatia com sua opção de vida, sua visão de mundo, sua incoerência e sua invejável irresponsabilidade.

Ganhador do prêmio de Filme Revelação no Festival de Cannes, “Gabriel e a Montanha” mescla atores profissionais e as pessoas com quem Buchmann cruzou ao longo de sua trajetória, o que configura um todo documental que depõe a seu favor, mormente numa produção com essas características, cheia de referências tão pessoais, tão desarmadas. Eximindo-se de emitir juízos de valor sobre a personalidade e as tendências ideológicas do biografado — ainda que figuras como Rashidi Athuman, o guia de safári que o trata sem distinções e sem se impressionar por sua valentia, ou Lewis, o último acompanhante profissional com quem Buchmann tem contato, manifestem expresso desconforto com suas atitudes impetuosas —, Barbosa dá aura jornalística à história, se preocupando em registrar os muitos prismas de um mesmo fato. O cineasta apontou certa feita a influência, meio óbvia, de “Os Renegados” (1985), da belga Agnès Varda (1928-2019) em “Gabriel e a Montanha”, apesar de seu protagonista ter carisma o bastante para sustentar a trama sem madrinhas, mérito em grande medida de João Pedro Zappa. O ator verdadeiramente incorpora Buchmann, lhe emprestando a irritação que decerto lhe assaltaria sempre que o chamavam de turista, quando era um viajante, alguem que está de passagem, sim, mas procura integrar-se à realidade do ambiente em que se encontra, valendo-se para isso principalmente do contato com os locais. Esse mzungu, esse homem branco, chega ao ponto de trajar a shuka, roupa típica dos povos tribais africanos, a fim de se aclimatar ainda mais aos vilarejos por onde passa, despertando a curiosidade dos habitantes e o estranhamento jocoso da namorada, Cristina, vivida por uma sensível Caroline Abras. A entrada de Cristina em cena, momento em que se conhece um pouco mais do protagonista além do gosto por viagens longas, sem previsão de término — ele reservou o ano para explorar o mundo antes de se mudar para Los Angeles, onde faria um doutorado em políticas públicas na UCLA, a seção da Universidade da Califórnia na cidade, depois de ter sido reprovado no exame pré-admissional de Harvard —, corrobora a alma idealista de Buchmann, revelada nos diálogos certeiros entre os dois personagens.

Em julho de 2009, moradores das cercanias do monte Mulanje, no Maláui, encontraram o corpo de Gabriel Buchmann, que dispensara Lewis, o guia que o iria acompanhar e seguira sozinho até o topo, por dispor de poucas horas para deixar o país e rumar para Moçambique. Fellipe Barbosa diz que o protagonista de “Gabriel e a Montanha” morreu de felicidade, mas pode ter morrido também de afoiteza, ânsia de viver, teimosia, esperança. No seu caso, uma coisa levava à outra.


Filme: Gabriel e a Montanha
Direção: Fellipe Barbosa
Ano: 2017
Gênero: Aventura/Biografia
Nota: 8/10