Ganhador do Festival de Cannes, drama da Netflix é um dos melhores filmes franceses da década Divulgação / Netflix

Ganhador do Festival de Cannes, drama da Netflix é um dos melhores filmes franceses da década

Dramas são divertidos justamente por reunirem situações em que a tristeza dá lugar a uma forma menos acerba de se perceber uma história, o que não deixa de contribuir para a gravidade do que é mostrado. “Divinas” (2016), filme de estreia da diretora francesa Houda Benyamina, não se furta a expor a pobreza como ela é, plena de seus episódios nada felizes, mas com margem para que também sejam exploradas outras possibilidades.

Desenvolvendo o filme ao longo de três anos, Benyamina e os roteiristas Romain Compingt e Malik Rumeau contam em “Divinas” uma parte da vida de Dounia, a adolescente que se faz de durona para não sucumbir a seu próprio meio. Logo se percebe que a pretensa sisudez da protagonista é mera estratégia: no fundo, Dounia não passa de uma garota perdida, que quase grita por ajuda, dicotomia que Oulaya Amamra sabe evidenciar sem tornar a personagem a caricatura de um mundo paralelo, feio, escuro, ignorado de Paris. O componente antropológico do filme vem nessas pílulas, sempre devidamente contextualizado, em que a ascensão social de indivíduos que habitam as partes desconhecidas das grandes metrópoles ao redor do mundo sempre passa por atividades infralegais — no caso de Dounia, o tráfico de drogas. Maimouna, a amiga vivida por Déborah Lukumuena, é um tipo ainda mais fragmentado; filha de muçulmanos praticantes, a personagem aparenta ter um pouco mais de prudência quanto a mergulhar de cabeça no submundo; todavia, ao pensar na própria vida e concluir que a religião nunca lhe foi de grande préstimo, acaba indo no embalo.

Filmes com personagens masculinos que cruzam sem cerimônia a fronteira que separa a miséria da marginalidade há aos montes, sobretudo no cinema de países subdesenvolvidos como o Brasil. Contudo, a questão de gênero nesse particular, felizmente ou não, tem importado cada vez menos e as meninas também tem sido apresentadas sob essa perspectiva. A também francesa Celine Sciamma, de “Garotas” (2014), e outro exemplo de enredo que fala da nova (e triste) condição da mulher no século 21, e não por acaso “Divinas” e o filme de Sciamma foram aclamados em Cannes, sendo que este também garantiu vitórias importantes no César, a premiação máxima do cinema da França.

“Divinas” não teria chegado onde chegou se não fosse sua protagonista. Não passa pela cabeça de ninguém que Benyamina tenha escalado a própria irmã para o papel principal de seu filme, e afortunadamente essa manifestação de desabrido nepotismo não degringola em vexame. Amamra parece ter sido feita para viver Dounia e sua interpretação, vigorosa, dá o tom de resistência de sua protagonista. A vulnerabilidade de Dounia é uma das características que a definem melhor. Procurando seu lugar no mundo, no começo de “Divinas” a personagem de Amamra se esgueira pelos interiores de uma mesquita esperando que Maimouna saia e elas possam, afinal, fazer o que mais gostam: vagar sem destino pelo lado pouco radiante de Paris. Algumas cenas depois, elas estão vestidas como autênticas muçulmanas, das mais fervorosas, cobertas da cabeça aos pés. O que apontaria para uma súbita e precipitada conversão de Dounia logo é esclarecido e se fica sabendo que as duas estão num supermercado e tanto pano serve para esconder as mercadorias pelas quais não pretendem pagar. Em mais uma demonstração de sua coragem subversiva — que pode descambar em prisão a qualquer momento —, Dounia aparece arrumada como para passar a noite numa boate, quando o que deseja é empreender um assalto que lhe demanda a ousadia de que dá provas uma seguida da outra, mas requerer também boa dose de perícia. A essa altura da trama, já está completamente seduzida pelo que Rebecca, a líder da gangue local encarnada por Jisca Kalvanda, lhe promete. Amamra monopoliza muitos dos momentos mais brilhantes de “Divinas”, mas esse crédito deve ser distribuído entre suas colegas de cenas também. Benyamina entrega a Lukumuena a responsabilidade por dar algum respiro a um filme tão intenso, e a atriz não a desaponta. Sua Maimouna se desloca pela história se utilizando um timing para a comédia digno dos grandes profissionais do meio, contrabalançando com graça a casmurrice de Dounia. Por seu turno, Kalvanda assume o posto de antagonista com todo o mérito; sua obstinação em deixar a descoberto a dubiedade moral de Rebecca, ao mesmo tempo em que resta irresoluto algum enigma na personagem aumenta muito a expectativa acerca do filme.

A entrada em cena de Djigui literalmente movimenta a narrativa. Se Dounia é uma garota pouco feminina, cuja maior preocupação é desfrutar de um padrão de vida que lhe parece inestimavelmente distante, o dançarino interpretado por Kévin Mischel vem lembrar-lhe que ela pode desejar — e conseguir — realizar sonhos muito mais fáceis e talvez muito mais prazerosos. As trajetórias dos dois se cruzam em circunstâncias nada românticas, o que só confirma o encantamento de um pela outra. Rapaz sensível, que disputa uma vaga num espetáculo de dança a ser apresentado no teatro que Dounia conhece como poucos, caberá a ele ensiná-la que não há mal algum em se reconhecer fraca, suscetível a dor e à vergonha por ser quem é, bem como fazê-la enxergar que pode extrair dessa vergonha a essência para uma principiar outra jornada.

“Divinas” tem certa dificuldade em se firmar, muito por causa de escolhas equivocadas de Houda Benyamina. As cenas que retratam a amizade de Dounia e Maimouna se estende um pouco além do recomendado, faltando tempo para desenvolver o arco da protagonista com o personagem de Mischel, que dá azo a todas as transformações por que Dounia passa, até o desfecho trágico. Essas experiências traumáticas, em cujo bojo está a chave para o amadurecimento de um tipo em franco estado de deterioração espiritual, vêm a calhar em filmes como “Divinas”, mais um belo registro do cinema sobre um dos maiores dramas das sociedades contemporâneas.


Filme: Divinas
Direção: Houda Benyamina
Ano: 2016
Gênero: Drama/Coming-of-age
Nota: 8/10