Um desejo de hipocrisia

Um desejo de hipocrisia

Boa noite, meu amor. Oi, como foi lá? Foi estranho. Em verdade foi bem estranho, mas bem estranho mesmo. Não vai me dizer que depois de todo esse esforço ele não entendeu. Não se preocupe, ele entendeu. O estranho é que ele entendeu não por causa do esforço, mas por outro motivo. Pare com isso, como ele teria descoberto se vocês guardaram esse misterioso segredo a sete chaves? Eu não sei resumir só numa frase o que aconteceu. Então me conte por escrito ou venha se deitar aqui, preciso de você essa noite. Não sei amor, estou com a cabeça em outro lugar e esse tema que você quer debaixo dos lençóis já me causou alguns constrangimentos hoje. Que constrangimentos? Do terno apertado à história sendo contada, à visualização que fiz enquanto eu ouvia a história real e você nela, na história ou em outras histórias. Se tem relação com o amor, então aproveite e se deite, descarregue em mim a história e minta-me ao ouvido. Espere, vou tomar um banho. Não demore, tenho que acordar cedo. Mas Rosangela, nunca é rápido e o que começa simples; em ti e por ti, tudo isso… torna-se um parque de diversões. Ou você me espera acordada ou te conto amanhã. Você depositará agora em mim toda essa história. Deixe-me entrar no banho. Não, venha aqui. Rosangela, não faça isso, não te empines. Que você apenas veja e que seja rápido no banho se quiser continuar vendo. Quantos banhos você tomou hoje? Sei lá amor, uns três. Acordamos e depois de suor e mel, tomei um. Depois corri e tomei outro antes de colocar o terno, na esperança que ficaria confortável para ir direto ao jantar, mas não consegui. Acabou o dia de trabalho e… péra aí, tomei só dois banhos hoje. Ainda bem amor, três é exagero e o terceiro de agora virará um quarto, você sabe. Tudo bem, já volto.

Você acha que ela o traiu? Não sei amor e não quero pensar nisso. Isso não é comum e penso que os motivos dela — se de fato foi isso o que aconteceu, pois que não posso contar — eram diferentes. Diferentes como? Talvez ela tenha se perdido em algum caminho, talvez por falta de diálogo com o Paulinho. Eu não sei nem o que aconteceu, então como é que você pode concluir isso? Por que ele sempre foi da pesada, ao menos foi o que você sempre me falou. Sim, sempre foi, mas quando amamos mudamos inclusive nossos eixos. Como assim? Mudamos por medo de perder o amor e aquela coisa que Dolores Duran dizia “não deixe o mundo mau te levar outra vez”. Todos temem perder e a liberdade é uma brincadeira para pessoas sérias — e nenhum dos dois é sério. Eles são sim, conheço ela desde que nos conhecemos naquele jantar e estou aflita por essa misteriosa descoberta de vocês. Mas por que você está aflita? Isso que aconteceu, se é que aconteceu, é da vida pessoal deles, um drama do amor, uma perdição no percurso. Você já se perdeu? Amor, você sabe que nunca nos perdemos, pois antes de sairmos da estrada compramos um jipe e andamos off road para evitar esse estresse. Você é um escroque, seu tarado! Eu? Tem certeza? Tudo bem, não vou me confessar. Eu sei, você sempre teve algum desejo por um deles. Já falamos disso e agora esse assunto gélido não vai me atrapalhar, continua! Então pare de me perguntar as coisas. Meu deus, aumentou? Você sabe que depende de você. Hoje estou com fome e preciso de mais no meu prato. Sim, dedique-se. Sim, isso. Calma, pare. Não me faça sair daqui agora. Seu ridículo. Desligue esse celular. Pegue, está na gaveta. Mas pego o que? Pegue o meu dedinho, preciso dele para relaxar e você brincar como quiser. Você quer hoje? Eu sempre quero, você é que está mais preocupado com o que os seus amigos estão sofrendo do que com a fome que a sua mulher está sentindo. Eu fiz quarenta, meu filho! E o que tem isso? Está se achando peça de museu? Pegue-o, veja se ele está carregado, e depois veja se não mereço ser lembrada no Louvre. Coloque. Com calma. Isso. Isso. Meu santo Deus!

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Fala meu irmão, beleza? Sim, tudo sussa. Paulinho já chegou? Ainda não, estava saindo do escritório e a cidade está parada com essa meia hora de chuva. E os outros? Chegarão na mesma hora que ele. Mano, o que aconteceu? Ela confundiu o nome e me enviou. O sujeito deve se chamar ou Marcos ou Marcelo. Ao menos é o que fiquei pensando aqui, tentando entender a cagada que ela fez. Me deixe ver o vídeo. Pare de ser tarado seu pilantra, é mulher do nosso amigo. Foda-se! Não vou marcar de viajar com ela, só quero ver a prova do crime. Jura que você se comporta como advogado até nessas horas? Eu sou advogado, mas eu adoraria ter sido herdeiro e não precisar nunca mais ver um juiz ou um departamento jurídico na minha frente. E aquela sua estagiária gostosa, já comeu? Não e nem vou. A menina tem um puta futuro e não quero misturar as coisas; ou ao menos, não mais! Essas coisas são complicadas. Mas me conta aí, o que ela estava fazendo? Ela estava na frente do espelho, gravando o cara que estava atrás dela e descrevendo o quanto ele lhe dava prazer. Ai meu pai do céu. Sim, complicado. Cara, será que o vídeo não é antigo? Pelo jeito não, ele fez a tatuagem das costas há uns dois anos. Mas ela o filma pelo espelho e aparece as costas dela? Não irmão, ele toma o celular dela e passa a filmá-la em detalhes de túneis e outros “proibidos”. Irmão, vai-te à merda. Você e essa sua intelectualidade complicam o simples. Eu sei, mas não gosto de falar essa frase. Diga. Não. Diga. Caralho! Ela estava dando a bunda! Nada mal para quem faz isso quase todo dia. O que tem eu ser gay? Como você descreve a sua trepada com o Geraldo? Para vai, chega! Me deixe ver o vídeo. Não. Como eu vou saber que você não está mentindo? E por que eu iria querer ferrar com a vida de um dos meus amigos? Não sei. Quer eu que diga? Jura que você acha que por eu ser gay eu tenho vontade dos meus amigos? Vai se tratar seu machão de quarta! Estou brincando irmão, você sabe! Eu sei, mas não me avexe com esses porres heteronormativos. Beleza. Me conte, ela é gostosa? Eu que não gosto, vou te falar que fiquei animado. Porra mano, mostre-me isso agora! Não. Talvez depois, a depender da reação dele. Você já pensou no que eu pensei? Sim, eu estava no carro pensando exatamente o que a sua mente suja deve ter pensado. Já imaginou o constrangimento se for isso o que aconteceu? Teremos cumprido a nossa obrigação. Qual obrigação? Para cara, para! Não confunda obrigação de amigos com direito constitucional. Não estou confundindo, mas é uma obrigação nossa. Agora eu é que te pergunto: e se ele fosse uma mulher, iríamos dedurar o marido? Sem dúvida! Tem certeza? Sim, quer dizer, são situações diferentes. Jura, ter um pênis ou uma vagina muda a ética de alguém? Não coloque as coisas assim, pareço um machista contigo me confrontando desse jeito. É por que você fez por merecer. Sim, eu me toquei agora. Então responda: sim, iríamos. Mande-me uma mensagem me lembrando de escrever sobre isso. Continue com sua literatura; e a Rosangela, está bem? Desculpe, você chegou e eu sequer perguntei dela e das crianças. Ela está ótima. As crianças foram dormir na casa da tia, aquela coisa de noite do pijama. Divertido. O tempo passa e nosso sonho deixa de ser a noite do pijama para ser a noite sem pijama. Você é retardado. Não estou sozinho nessa. Agora me conte como você teve a ideia do livro como forma de introduzir o assunto? Me veio na cabeça quando eu caminhava pela manhã. E você por acaso caminha, sua bicha sedentária? Tá bom, eu estava tomando um dry com um amigo quando ele me chamou para participar de um clube de papos e leituras com intelectuais do primeiro time. Entendi, você estava com vontade de trair o seu companheiro e descobriu uma forma de contar para o seu amigo sobre a traição da mulher dele… Que bonito isso! Para vai. Curioso: o machista e o canalha. Vira livro? Só se for de um inglês bêbado ou… sim, isso que você pensou.

Fala pessoal. Querido! Como foi a viagem? Viagem nada, estava há 3 quilômetros daqui, mas essa chuva fodeu a cidade. E a zeladoria? Quem inventou essa porcaria de termo… “a zeladoria”? Redes sociais, amigo. Sim, algum cdf que fez doutorado traz palavras eruditas pro debate, algum idiota acha bonito, passa a repetir e algum jornalista moleque começa a repetir essas abobrinhas no ar, ao vivo. Verdade. Agora, ao que interessa, quer dizer, o primeiro passo: onde está a minha taça? No lugar de sempre Rodrigo, debaixo da pia. E o vinho? Dentro da máquina de lavar. Como assim? Pergunta idiota, resposta idiota. O vinho está em cima da mesa, na sua cara. Pelo jeito a noite será longa, né? Se você estiver com a cabeça cansada desse jeito, será. Quer tirar um cochilo no meu escritório? Não, preciso entender qual será o nosso roteiro e preciso ver o vídeo. Não! Mais um tarado, não! Preciso ver para crer. Sim, para crer se ela é gostosa ou não. Não, não quero ser injusto. Irmão, veja isso aqui. O que é isso? O desespero dela apagando o vídeo que imediatamente reenviei para o meu outro número. E isso aí embaixo? Ela querendo desconversar, dizendo que era o vídeo que um grupo de amigas trocou e que me enviou sem querer. Ela ainda acusou o golpe? Acusou, arriou e foi à lona. Que merda.

Bom meus irmãos, é o seguinte: todos vocês leram o conto que lhes enviei, não? Sim. Cara, como você achou um conto daqueles, tão bem escrito, num livro desconhecido? Ele é desconhecido para você, seu xarope. A sujeita ganhou um Pulitzer. Um o que? Nada. Seguinte, é a mesma história, mas a descoberta ocorreu por cartas de amor, até porque estavam na grande depressão. Sim, é de Consuelo Hamilton. Mas eu não sabia que ela era tão velha. Velha não, morta. Ela na verdade é antiga! Gente, vamos parar com a aula de história das cidades e da putrefação para focarmos em como iremos introduzir o assunto? O que acham de começarmos falando de traição? Sim, quase sem dar na cara. Vejamos o roteiro que vejo até aqui: o advogado criminalista é um tarado, o gênio do mercado financeiro quer ser justo e o teatrólogo quer começar a peça pelo clímax. Que merda que eu fiz chamando vocês aqui! Sem viadagem irmão, pare com isso. Olhe só como você fala comigo, não sou eu quem ficava medindo o próprio falo com os amigos de faculdade. Cala a boca! Chega vocês dois! Parecem crianças jogando culpas sobre bundas e adjacências! Gente do céu, veja só o que você acabou de falar. O que? Nos reunimos para tratar sobre a bunda e o pau alheio e quando começamos uma discussão, jogamos bundas e paus nas caras uns dos outros. Gente, chega! O assunto é sério e mexe com a alegria de um irmão nosso e sim, somos os marechais da contradição. Querem desistir ou vamos tramar o roteiro? O tecido da história é tramado com pelos pubianos! Meu filósofo, quem disse isso? Um professor do Rogério, mas é uma verdade. Bom, eu não vi o filme para ver isso de pelos pubianos está dentro do contexto. Pelo que nosso anfitrião contou, para os pelos estarem envolvidos é porque a moça estava descuidada. Gente do céu, que baixaria.

O esquema é o seguinte: começaremos a falar do livro. Você como advogado, começará a contar causos e segredos de clientes que tenham relação com o sexo marginal, escondido ou qualquer coisa do tipo. O gênio do mercado pegará aquela parte magistral sobre o banqueiro e suas festas luxuriosas e contará alguma experiência que teve com a sua antiga namorada. Pode ser? Por mim, pode ser sim. Eu tentarei entrar na dúvida que temos diante da existência carnal, tentando colocar que muitas vezes somos obrigados a silenciar sobre o desejo que temos escondidos por ainda estarmos “dentro de um armário” e sem perspectiva de sair. E se ele não se tocar? Bom, então entraremos na discussão das relações e se já trocamos ideias com nossos parceiros sobre desejos que vamos tendo ao longo de uma relação, desejos que seriam impensáveis ao tempo do terror do ciúme. O que é o terror do ciúme? Um irmão gêmeo da paixão. Olha, não sei não. Por que não? Está faltando alguma coisa nesse quebra-cabeça, alguma coisa que passa da linha do cuidado. Como assim, o que é “linha do cuidado”? Gente, vocês acham que alguém como ela gravaria uma cena íntima, deixaria no celular e enviaria para alguém assim, sem mais nem menos e sem que o Paulinho soubesse, desconfiasse ou pelo menos fechasse os olhos? O Paulinho, meu amigo Marcos Paulo de Albuquerque, não é nenhum idiota; inclusive, todos nós sempre fomos os idiotas da história e ele o fodão bem sucedido antes que todos nós chegássemos onde chegamos. Isso é verdade. Então, o que faremos? Eu proponho deixarmos rolar o papo com os temas do roteiro, mas sem amarras. Eu gosto dessa ideia, mas e se ele souber das aventuras da esposa e perceber que estamos orbitando o seu chifre? Bom, então ele vai virar a mesa e nunca mais nos olhará na cara. Eu não quero perder meu amigo, na boa pessoal. Vamos sentir como ele está antes de pensarmos em como agir? Sim, por que precisamos resolver isso hoje? Olha, calma aí, ele está chegando. Ligue o som e comecemos a falar sobre qualquer coisa. Eu vou falar do chifre que ganhei de uma antiga namorada, pronto! Como assim? Eu vou me expor e dane-se o que vai acontecer. Não faça isso cara. Deixe acontecer, a única coisa que não quero é ofender o irmão.

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Marcos Paulo! Seu corno safado! Ô, não fale assim comigo! Saudades, seu filho de quenga! Gente do céu, a quadrilha toda reunida por causa de um livro de mais de século atrás! Todos viemos e como você sabe, literatura e amores são temas universais. Na companhia de vocês para mim tudo é universal, vocês sabem disso há mais de vinte e cinco anos. Conte-me Paulinho, e a Clara? Clara está bem, vivendo a vida dela de forma maravilhosamente plena. Depois que foi mãe as coisas se acertaram com os seus antigos dramas, aquelas coisas dos pais terem sido uns neonazistas durante toda a sua adolescência e juventude. Agora ela está em paz. Querido, desculpe te mandar esse zap, mas você acha que isso dará certo? Ainda bem que demorei para visualizar a sua mensagem ou ele teria percebido a conversa contrabandista por aqui; mas realmente eu não sei, esse discurso de plenitude mexeu com a minha ideia inicial. Comigo também, será que eles se tornaram um casal, como é que se diz mesmo? Liberal. Não sei, mas se for isso ele ficará constrangido de sabermos. Então, esse é o meu medo. Vamos tocar de forma mais leve. Beleza. O que vocês acharam da troca de cartas? Maravilhosa, o autor conseguiu passar todo o drama dos dois apaixonados de uma forma interessante do ponto de vista da escrita e maravilhosa enquanto descrevia os dramas. Sim, isso é verdade, vocês repararam o recurso de escrever cada sensação humana a partir de lugares específicos? Sim, no lago a profundidade do sentimento; no deserto o tempo sem o encontro e a consequente sede pelo beijo; nas ruas a perdição da vida social entre tantas pessoas e circunstâncias; no quarto o silêncio do casal enamorado que pós-coito, não tem muito mais o que dizer e na escrita, o temor de errar nas palavras assim como na vida. Eu não tinha reparado nisso tudo não. Claro seu animal, você só pensa nas safadezas do casal. Safadezas não, ardência. E você Paulinho, o que achou? Eu? Então, eu já não tenho mais dramas de alcova. Como assim, tá pirado é? Não cara, eu perdi o senso de realidade depois que descobri que a Clara precisava ser livre. Como assim, ser livre? Ora, ser livre como nós sempre fomos. Em que sentido você está falando isso? Falo no sentido de colocar para fora os seus medos — medos não, seus pavores — e tudo aquilo que viveu no espelho da vida dela. Meu Deus do céu, o sujeito virou um Lacan buarquiano. Não gente, é que é foda dizer, mas enquanto vivemos em hipocrisia, saindo no meio da tarde para termos com a estagiária, com a profissional no flat e chegamos em casa como se fôssemos os santos do mundo, nós nos esquecemos que isso é mentir. Sei, nós somos mentirosos, então? Não somos? Pense bem no que nós dois acabamos de trocar. Eu tenho medo meus irmãos, medo terrível, de viver debaixo dos panos da mentira, no vulto da hipocrisia. Paulinho, o que você está querendo nos dizer? Nada, só penso que prefiro a verdade do que colocar a vida no cofre do medo. Mas você está vivendo com o cofre aberto? Eu sempre vivi com o cofre aberto. Você, nós sabemos, mas e o que você faz com o seu casamento? Como assim? O que você faz para implementar toda essa filosofia bonita no seu casamento? Eu não preciso implementar a verdade, a mentira é que precisa de injeções. Não estou entendendo, irmão. O que você não entende? Você está dizendo que nós somos mentirosos, que vivemos cotidianamente em mentira, está afirmando que em sua vida a verdade prevalece, só estou perguntando se você vive os seus pecados, deixa vive-los, ou está aqui se preparando para o concurso de filosofia e nos usando como cobaias. Não! Jamais os usaria como cobaias, eu os amo como amo aos meus irmãos. Bonito isso. Você não me ama como ao Renato? Sim, você sabe que amo. E você inclusive sabe mais: que se a vida não me impusesse ele, eu não tomaria uma xícara de café em sua companhia e, escolheria tomar com você e com os demais ao redor dessa mesa. Então, é isso. Estou emocionado. Como o que Paulinho? Pela delicadeza desse momento. Opa, péra aí! Que delicadeza? Nada não.

Gente, estou achando estranho todo esse papo. Você não leu o livro? Li e confesso que me instigou bastante, fiz anotações ao final de cada passagem que me tocou, vim pensando no carro quais seriam os pontos que abordaríamos e agora a coisa desandou para algum jogo de meias palavras que eu desconheço. Não é nada Augusto, é que o Paulinho colocou uns pontos na mesa que foram instigadores. Quem sabe dessa trama? Que trama Paulinho? Dessa mentira preparatória. Mas que mentira preparatória? Essa que vocês tramaram. E nós somos de tramar mentiras? Paulinho, porque você está sorrindo desse jeito? Pela delicadeza do momento e pelo amor que vocês têm por mim. Estou ficando preocupado. Não precisa ficar, sou o mesmo Paulo de sempre, mas um pouco emotivo nesse momento. Pronto, envelheceu e enviadou. Cinco homens se abraçando, falando de literatura, bebendo vinhos franceses, na casa desse gay que vos fala e a expressão pejorativa é enviadou?

Amigos, verdade é verdade. Sim Paulinho, sempre foi, inclusive conosco. Sim, mas mentimos para nós mesmos quando é para nos proteger, não é mesmo? Sim, desde o dia do casamento e do apartamento número dois do gênio do mercado. Claro que sobraria para mim! Não me lembre disso! Que história é essa? O bonitão aí saiu com a esposa para uma baita festa de casamento, e quando falo uma baita festa, era uma baita festa mesmo. Para variar um pouco, tomou de todas as garrafas disponíveis e como sabemos, o bichinho é forte para essa brincadeira. E daí? Porra meu irmão, ele não sabe da história, para que contá-la dez anos depois? Cala a boca, vou terminar. Pois bem, a festa acaba, a Mirela um pouco melhorzinha insiste em pegar a direção e o bonitão? Não, eu quem vou dirigir. E toca o carro. De repente a Mirela percebe que o caminho não é o da casa deles e espertamente, fica quieta. Mulher é foda! Não, mulher não é estúpida que nem homem. Sim, é a mesma coisa que falei, mas sem adjetivos. Não, não é. Então, o bonitão segue dirigindo para um bairro nobre, todo pomposo no seu carro alemão e de repente? Bate o carro? Não, ele encosta num prédio daqueles de apartamento pequenos, mas todo elegante e saca do porta-luvas o controle do portão. Hum… Abre o portão com calma, para na vaga com alguma dificuldade, desce do carro e… Conta! Não a deixa sair até que ele dá a volta e abra a porta do carro para ela. A acompanha até o elevador, aperta o décimo primeiro andar, vai em direção a uma das portas e saca a chave do bolso. Quando ele enfia a chave na porta e a porta é destravada, a Mirela olha para ele, com aquela frieza de quem acaba de descobrir a trama canalha no vacilo da cachaça e pergunta: Que apartamento é esse? Preciso te contar que apartamento era aquele, meu digníssimo irmão? Como você contornou a situação? Nossa senhora, eu ainda não contornei por completo.

Vocês são meus amigos, mesmo! Nunca duvidei disso, mas agora fico lacrimejado. Paulinho está a quinze minutos de sair do armário e se declarar um poeta inglês de uma banda de rock. Não é isso. Vejam só tudo o que vocês tramaram para me contar uma história que eu já conheço, todos os melindres para revelarem o que não é segredo e a delicadeza de não me magoarem. Vocês acham que não vim aqui para lhes pedir desculpas?

Calma Paulinho, do que você está falando? Estou falando que vim pedir desculpas pela indelicadeza não intencional da Clara e tudo o que ela deve ter causado — e que se comprovou agora. Calma Paulinho, você está com titica de galinha na cabeça? Não. Paulinho, do que você está falando? Se lhes dou a dica que não vivo em mentira, muito menos viveria em mentira com a minha mulher, de onde nasce o espanto com o qual vocês estão me olhando? Eu e Clara temos a nossa vida particular, nossos desejos e liberdades. Sei que vocês vivem assim, mas em mentira com seus companheiros. Eu decidi dividir e fazer dividir. Prefiro assim, sem esconder a estagiária e ela sem esconder o personal. Agora eu gelei. Não precisa irmão. O meu drama é que vocês devem ter gastado milhões de neurônios para tramar isso aqui, toda essa peça cênica para me fazerem concluir algo que já sei; por isso estou constrangido, por minha vida ter constrangido vocês. Não irmãos, não se entreolhem, pois eu não estou em nada constrangido. Só pediria para você, meu lindo, que não mostrasse aos demais o vídeo que recebeste. Diga querido, você o mostrou? Eu não mostrei. Sim, eu imaginei. Somos irmãos. E espero que os demais tenham cumprido o papel de querer vê-lo. Paulinho, eu não sei o que dizer. Não é para dizer nada, não tem relação com a vida de vocês e nem com a nossa irmandade. Ok? Paulinho, você é um libertino. Não querido, eu sou um homem feliz que ama uma mulher e tem os melhores amigos do mundo. Obrigado, Paulinho. Mas posso lhes dar uma dica? Claro. Não comentem com suas mulheres ou no seu caso, com o seu companheiro, o que se passou aqui hoje e antes. Mas por que? Pois a verdade e a liberdade, libertam. A mentira é que conforta a nossa covardia.

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Amor, foi isso o que aconteceu. Eu nunca imaginei que eles fossem assim, mas não vou dizer que estou chocada. Eu não tenho mais nenhuma esperança que as pessoas vivam como os nossos avós viviam e inclusive, nós somos um bom exemplo disso. Mas preciso entender uma coisa: se ele pediu para não me contar, por que você contou? Eu posso te dar um milhão de motivos, mas ao mesmo tempo em que ele pediu, todo o discurso dele foi sobre não mentir. Ele nos apresentou um paradoxo dos bons. Veja a minha situação, minha linda: acabo de descobrir que um dos meus grandes irmãos na vida é mais meu irmão do que eu poderia imaginar; compartilhamos o mesmo tipo de vida, o mesmo formato de relação com nossas esposas e todo o resto. Mas isso te surpreende? Como assim? Somos o que nós somos, nossas circunstâncias e amigos; as pequenas conversas e os pequenos símbolos que lançamos influenciam o mundo, mesmo que eles não sejam diretos. Eu sei meu amor, eu realmente sei disso. E você sabe que não é só isso; você sabe que muitas das coisas não ditas, que damos a entender e que às pessoas cabe apenas imaginar, são as grandes lições da vida. O que aconteceu com o mundo? Ele se libertou, mas em segredo. Será que ele não foi sempre assim? Provavelmente. Veja-me como exemplo: depois de tudo o que passei, das travas que criei, dos cadeados que você arrombou e me ajudou a arrombar ainda mais, por que ainda estamos em segredo? Eu realmente não sei. Será que o medo de ser julgado é a alma do convívio social? Provavelmente, tenho por certo que o medo é o sentimento elementar e o julgamento o primeiro ato do ser humano. E seremos justos quando conhecermos os fatos, como aconteceu hoje? E por acaso estamos sendo agora? Espero que sim. Não quero julgá-los por serem o que são. Talvez seja pior: tememos julgá-los por eles serem o que nós somos. Agora venha, quero você de novo. Como eu quero, ou como eles iriam querer? Como qualquer um…