Através da Minha Janela, novo filme da Netflix, é espetáculo de constrangimentos ao tratar adolescentes como idiotas

Através da Minha Janela, novo filme da Netflix, é espetáculo de constrangimentos ao tratar adolescentes como idiotas

Histórias de amor trazem em seu bojo o signo da tragédia e, se não resvalam para ela, é só porque a nobreza do mais humano dos sentimentos se impõe à barbárie dos instintos. Dois indivíduos completamente diversos um do outro, dois rios paralelos, se cruzam em algum momento e, se tudo correr direitinho, vão desaguar no oceano plácido da Eternidade. Mas e se as coisas não forem exatamente assim (e quase nunca o são)? É justo essa a magia do amor. Vinicius de Moraes (1913-1980), gênio e um especialista no assunto, disse muito bem em seu “Soneto de Fidelidade” (1946) que o amor, em sendo chama, não pode ser imortal, mas pode ser infinito enquanto os amantes se amarem. Pode ser redundante, óbvio até, mas o amor é mesmo ridículo, como alega o poeta lusitano Fernando Pessoa (1888-1935), outra sumidade no assunto.

Não há nenhuma tragédia em “Através da Minha Janela” (2022), mas bem que poderia haver. O filme do espanhol Marçal Forés segue a tendência lançada por produções como “A Barraca do Beijo” (2018), de Vince Marcello, esmerando-se por tentar convencer o espectador do romance súbito entre um rapaz e uma moça, vizinhos que acabam por se aproximar graças à generosa conexão de Wi-Fi dela. É precisamente aí que os problemas começam.

A janela do título resta por completo deslocada, uma vez que a narrativa quem dispensa cerimônia e se desenvolve à revelia do que propunha o roteiro do próprio Forés. É um disparate um filme chamado “Através da Minha Janela” não ter uma sequência daquelas bem típicas do cinema romântico, em que um dos protagonistas que integram o casal apresentado na trama observa o outro da sua ventana, de preferência com o auxílio de um binóculo. Decerto, o diretor apenas fora o mais fiel possível ao adaptar o livro de Ariana Godoy, fenômeno de popularidade entre adolescentes e pós-adolescentes do mundo todo, especialmente os do sexo feminino. Essa é a fase da vida em que sonhar — com o amor perfeito, com um casamento feliz, com carreiras que ascendem num estalar de dedos, com as mansões faraônicas e os carrões de luxo que elas proporcionam — é um imperativo moral, mas há um limite nas coisas. O trabalho de Forés dá tantas, tantas cabeçadas que fica difícil resolver por onde começar.

Como já se disse, a tal janela resta completamente perdida e nunca deveria ter sido aberta. Superado esse detalhe, insinuam-se outros, que denotam a fragilidade essencial do longa. Começando do comecinho, é impossível entender como Raquel e Ares podem ser vizinhos, se a personagem de Clara Galle é uma garota de classe média, que certamente só está na ótima escola em que estuda graças a um programa de bolsas e cuja mãe se vira como garçonete freelancer; ela mesma trabalha como atendente de um quiosque de parque de diversões por uns caraminguás para os seus alfinetes, o que inclui o acesso à internet via roteador. Cada enxadada, uma minhoca, e esse deslize conduz a outro. Ares Hidalgo, o vizinho que nem observa nem é observado interpretado por Julio Peña, passa a orbitar o mundinho de Raquel exatamente por causa do wi-fi da moça, que deve fazer inveja à NASA. Até aí, morreu Neves, não haveria nada de mais. Não haveria, mas há: Ares, o deus da guerra das redondezas, é um playboy milionário, filho de um megaempresário que passa a trama quase toda ausente da história. Não se pode aventar a possibilidade de ser essa uma estratégia para se aproximar da garota, uma vez que ela é apaixonada por ele, que por seu turno não perde a chance de lhe dizer que nunca se sentiu atraído por Raquel. Pano rápido.

Se existe uma qualidade nesse subgênero de comédia romântica — a das comédias românticas de adolescentes e que tais — é a abordagem do sexo sem muito rodeio. Partindo-se do pressuposto que a classificação indicativa seja sempre respeitada (para ser franco, acho que deveria subir de dezesseis para dezoito anos), não há muito com que os pais devam se preocupar, já que no horário nobre da televisão aberta no Brasil aparecem senhoras entediadas se masturbando como se não houvesse amanhã. Contudo, os saidinhos que esperam sexo explícito, closes ginecológicos ou mesmo uma singela nudez frontal, tirem o cavalinho safado da chuva. Os cortes em “Através da Minha Janela” são sublimemente elegantes, deixando aquele gosto de quero mais que certamente é muito melhor que a exposição gratuita. Dispensa-se mencionar que Galle e Peña têm afinidade de sobra — pelo menos isso —, e o jogo de gato e rato entre os dois até serviria para se atenuar a indigência intelectual da história, que se mantém até o desfecho, depois de uma, vá lá, reviravolta que quem se deixou capturar demais pela beleza fresca dos personagens centrais vai custar a entender. Em se falando de personagens secundários, fica evidente o talento de Guillermo Lasheras, subaproveitado como Yoshi, o melhor amigo de Raquel que, surpresa!, é  apaixonado por ela. Resta uma pulga atrás da orelha sobre sua verdadeira identidade sexual — é muito comum na etapa confusa em que se encontram que meninos se acreditem apaixonados por suas melhores amigas, quando o que se tem, na verdade, é uma projeção, ou seja, eles se apaixonam por elas porque elas são o que, no fundo, eles gostariam de ser, nada que um bom psicanalista não resolva. Tio Gian é muito velho e muito ocupado para acompanhar folheteens (se é que esse dado já pipocou em algum momento). Quem quiser me atualizar, sinta-se à vontade.

Além da duração abusiva, de quase duas horas, “Através da Minha Janela” peca por replicar todos os clichês de filmes com essa proposta, o que dá a impressão de que adolescentes bobalhões seja mesmo um pleonasmo, mas só a impressão. Adolescentes podem ser bobalhões, como o podem ser sujeitos de meia-idade, velhos, anciãos, múmias. Mas adolescentes podem gostar de algo melhor que uma coleção de platitudes que, no fim da festa, só serve para encher as burras de certos escritores e cineastas.


Filme: Através da Minha Janela
Direção:
Marçal Forés
Ano: 2022
Gênero: Comédia romântica
Nota: 4/10