Lançamento da Netflix, com Meryl Streep e Leonardo DiCaprio, é o filme mais engraçado e trágico de 2021

Lançamento da Netflix, com Meryl Streep e Leonardo DiCaprio, é o filme mais engraçado e trágico de 2021

O fim está próximo e ele vem do alto. Por trás de grandes sucessos do cinema, todos dotados de algum grau de cinismo e descrédito na humanidade, em “Não Olhe para Cima” Adam McKay apresenta a sua versão para o maior medo da humanidade — e grande alívio para alguns —: a iminência da morte.

Lançado em 2021, depois de quase dois anos de isolamento compulsório devido a uma pandemia que botou muita gente louca — e matou outro tanto —, McKay joga no caldeirão de seu filme suas impressões mais cômicas e dramáticas sobre as redes sociais como um foco perene de hostilidade e subversão de valores, o desenvolvimento tecnológico irrefreável, as reviravoltas do clima, a futilidade de pessoas que se pensam célebres, ou seja, a vida no século 21, mantendo cada assunto em sua gaveta correspondente e embaralhando-os quando lhe convém. Deliberadamente aloprado, em momento algum “Não Olhe para Cima” abre mão de manter o espectador na rédea curta, mostrando-lhe, até de modo didático, com o que importa se preocupar ou não.

A história tem todos os clichês de um filme-catástrofe, protagonizado por um cometa prestes a reduzir a Terra a escombros numa colisão estimada para dali a seis meses e 14 dias. Esse corpo celeste desgarrado de uma galáxia vizinha fora revelado graças à descoberta de Randall Mindy, astrônomo da Universidade do Michigan, auxiliado por sua assistente, Kate Dibiasky, convocados a dar explicações detalhadas sobre o pode estar por vir — como se precisasse — à Casa Branca. Os personagens de Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence saem em disparada para o encontro com Janie Orlean, a abilolada presidente dos Estados Unidos vivida por Meryl Streep, convictos de que a mandatária maior da República está de fato apavorada e quer fazer alguma coisa a fim de minimizar os estragos, como se fosse possível. O cenário nonsense a que são aprisionados parece mesmo um prenúncio do apocalipse: Orlean leva sete horas para aparecer, absorta que estava nas discussões em torno do nome indicado por ela para a Suprema Corte, que pode acabar rejeitado em função das muitas tramoias, pretéritas e atuais do candidato. Tudo pateticamente similar ao que toma os palcos de um certo país ao sul do continente de tempos em tempos.

A partir de então, o componente de glosa política recrudesce, com uma Casa Branca cada vez mais imersa numa narrativa burlesca, farsesca, mas ao mesmo tempo lastimavelmente verossímil, personificada numa governante obcecada pelas eleições legislativas que não tardam, fundamentais quanto a lhe apontar se sua permanência à frente do Executivo federal será viável ou se terá de pensar em alternativas caso o navio faça água. O cometa pode até ter lá sua relevância, claro, mas seu instinto de sobrevivência fala mais alto. Sobrevivência política, bem entendido. O diretor açula o público ao insinuar que, no fundo, a natureza humana está muito mais para Janie Orlean do que para Randall Mindy, muito mais afetada (e tocada) com os escândalos políticos que com possíveis hecatombes que podem acabar não passando de mero delírio, quiçá a esperança suicida e assassina de um bando de fanáticos, ou melhor, de um fanático e uma fanática, que não têm na vida aspiração qualquer além de, como os romanos no poema do alexandrino Konstantinos Kaváfis (1863-1933), escrito em 1904, esperar pelo fim. O título, “À Espera dos Bárbaros”, não por acaso foi aproveitado pelo escritor sul-africano J.M. Coetzee em seu romance, publicado em 1980, que por seu turno vira filme pelas mãos do diretor colombiano Ciro Guerra, em 2019. O mundo é uma aldeia.

Mindy e Dibiasky são cavaleiros do Apocalipse cônscios de sua função, mas sua tarefa é uma pedreira, dificultada ainda mais por jornalistas que espetacularizam tudo. Em “Não Olhe para Cima”, essas figuras estão muito bem representadas por Jack Bremmer e Brie Evantee, os âncoras que tornam o roteiro ainda mais saborosamente vesano. A essa altura, alguém já pode ter se perdido no universo de criatividade indomável de McKay, repleto de estrelas, palmas para Francine Maisler, a diretora de elenco — ou pode apenas estar hipnotizado pelo penteado de Lawrence, decerto um dos mais feios da história do cinema, outra prova de amor ao seu ofício —, mas o filme tem passagens lapidares. A entrevista que os cientistas concedem aos personagens de Tyler Perry e Cate Blanchett certamente é um dos pontos altos da trama; sutil em toda a sua algazarra, a sequência revigora a tensa discussão sobre limites da imprensa, desprezo à ciência, obscurantismo intelectual, negacionismo. A pantomima circense levada por Bremmer e Evantee gera a histeria de Dibiasky, que grita em cadeia nacional que estão todos condenados, e tem de arcar com todos os muitos ônus de sua coragem impulsiva. A distopia é real.

O trabalho da equipe de computação gráfica, deslumbrante, já no desfecho de “Não Olhe para Cima” acena com certa dose de conforto espiritual num tempo em que políticos demagogos acabam experimentando a fúria de criaturas à primeira vista adoráveis, mas que como eles, sabem esconder suas verdadeiras intenções direitinho. Não é uma solução, mas o cinema existe muito mais para iludir o homem que para alentá-lo. Não olhe para baixo.