Que bicho você prefere ser na pandemia?

Que bicho você prefere ser na pandemia?

Tem uma música do Chico Buarque e do Caetano Veloso que é um hino do espírito nacional: Vai levando. Ela lembra que nós, brasileiros, somos capazes de superar quase tudo. Mas peraí, “a gente vai levando”? Levando para onde, meu Deus? Com a pandemia, muita gente perdeu emprego, familiares e a esperança. Para alguns, é simples “ir levando”. É só pensar “antes eles do que eu”.  Mas se você tem algo no peito além de osso e cartilagem não consegue assistir sossegado a essa crise social causada pela Covid-19. E quer saber se é só você que leva a coisa a sério, carrega álcool gel no bolso e um pouco de tristeza nos ombros.

Acredite: você não está sozinho. Tem mais gente (incluindo eu) com aperto no coração. É sinal de sensibilidade. Pra muitas pessoas, sensibilidade é algo inútil, demodê. Não caia nessa. A sensibilidade nos diferencia de muitos bichos. Você já deve ter visto essa cena no Discovery Channel ou no Globo Repórter: uma leoa corre atrás de um bando de zebras em busca de um almoço. Até que pega uma e faz uma refeição sangrenta. As zebras que escapam observam de longe. Depois voltam a pastar. “Antes ela do que eu”.

Querem que você se comporte assim. E ainda dizem que essa indiferença é sinal de força e resiliência. Mentira. Você não é uma zebra. “Tem que ter coragem”, disse o presidente. Coragem pode ser útil em um combate. Em uma pandemia não faz diferença alguma, o vírus não liga pra isso. O que você precisa ter é empatia. Empatia não mata o vírus, mas alivia a vida de quem tá vivo. Evite o silêncio constrangido. Ele pode virar conformismo.

E há muito tempo o brasileiro é doutrinado para se conformar. Em um país decente, sair de casa e voltar vivo é normal. Aqui é exceção: nossa taxa de homicídios é 5 vezes a média global. A Covid-19 contribuiu com nossos cemitérios, chegando a abater 4 mil pessoas por dia. Quase 3 por minuto. Passar por isso e fingir que tá tudo bem é como ser uma avestruz que enfia a cabeça na terra. E quer saber? Avestruz nenhuma faz isso. É mito. Mesmo uma avestruz não é estúpida a esse ponto, por que você seria?

Dizem que existe um vírus que mata quase 50% de todas as bactérias dos oceanos anualmente. Nos oceanos, todo dia é dia de pandemia. As bactérias não sabem disso, por isso vivem tranquilas no meio da carnificina do seu dia a dia. Você não é uma bactéria. Tem consciência do mundo em que vive. No filme Rede de Intrigas, de 1976, um apresentador surta e incentiva as pessoas a berrarem na janela para mostrar que não aceitam uma realidade cruel. Parece loucura, mas não é. Revolta é sinal de lucidez. Cuide de quem ainda tem a sanidade de se revoltar. Mostre que elas não estão sozinhas. Tem você. Tem eu. E mais um bocado de gente. Não somos minoria.

E nós temos um trabalho a fazer: incomodar quem não liga para esse caos todo. Não adianta só cobrar o presidente e chamá-lo de genocida. Ele não liga (e acho que nem sabe o que a palavra significa). E ainda vomita cretinices na tv à vontade. Não podemos agir como zebras, aceitando isso como “coisas da vida”. Que a gente vomite de volta. Ou, no mínimo, o faça chorar sozinho no banheiro (ele disse que chora, mas eu duvido). Temos que incomodar quem está fazendo cara de paisagem para esse carnaval de desastres em que vivemos.

Muita gente tem espalhado casos de pessoas que se reinventaram na pandemia. São histórias bonitas, mas podem não servir de exemplo para você. Você pode ficar angustiado, achando que o mundo todo está se reinventando, menos você. É lorota. Quase todo está mundo preocupado. Quem não está é psicopata. Aproveitando: eu escrevi um texto aqui na Bula alertando para a futilidade dessa urgência em se reinventar.

Aliás, você já deve ter ouvido a história da renovação da águia, certo? Em certo momento da vida, a águia arranca o bico e as garras em um doloroso processo de renovação. É uma linda história para livros de autoajuda. Mas também é falsa. Águia nenhuma faz isso. E mesmo que fosse verdade, não leva em conta o fato de que a águia é um predador. Um coelho não pode se meter a sangrar para “se renovar”. Ele está muito ocupado fugindo da águia para não ser comido.

Não aceite que te obriguem a se comportar como um animal irracional. Você não é uma zebra, nem uma águia, avestruz ou bactéria. Esses bichos podem se dar ao luxo de apenas sobreviver. Você deve fazer mais do que isso. Você até tem a liberdade de se comportar como uma zebra, pastando tranquilamente. Mas faça o favor de ficar distante de mim. Eu prefiro ficar cercado por seres humanos de verdade. E, pra mim, seres humanos de verdade até conseguem “ir levando”. Só não conseguem ser indiferentes.