Filme de rara beleza, com o poder de te transportar para dentro dele, está na Netflix

Filme de rara beleza, com o poder de te transportar para dentro dele, está na Netflix

Chloé Zhao estabeleceu sua marca na indústria do cinema. Hoje, qualquer um é capaz de saber, nos primeiros minutos de projeção, se um filme é da lavra da diretora chinesa radicada nos Estados Unidos, uma das mais criativas do cinema deste século. A um só tempo uma excelente vendedora, mas sem abrir mão do estilo, Zhao inventou uma forma de fazer filmes que reúne numa só produção todo o profissionalismo de Hollywood a uma aura que remete ao artesanal, tendência iniciada em “Domando o Destino” e confirmada com êxito absoluto em “Nomadland” (2020), com o qual ganhou o Oscar de Melhor Diretor e de Melhor Filme, em 2021, feito só conseguido por Kathryn Bigelow em 2009, com Guerra ao Terror (2008).

“Domando o Destino” tem linhagem nobre, mas vence por seus próprios méritos. Vencedor do Prêmio de Arte do Cinema do Festival de Cannes, em 2017, quando foi lançado, a história de um caubói que se percebe sem rumo, devido a um revés próprio da carreira que escolheu, tem a capacidade de dosar com precisão rara o naturalismo de suas performances com o refinamento da pós-edição e da montagem, contando ainda com a fotografia aberta de James Joshua Richards, de enquadramentos inspiradores pela amplidão do que é mostrado. Elenco, composições técnicas, roteiro — escrito pela própria diretora —, tudo trabalhando em conjunto a fim de se fomentar a discussão acerca de padrões de masculinidade hoje visivelmente ultrapassados, mas que sobrevivem entre peões de rodeio, uma categoria famosa pela pouca inteligência emocional. Peões ou são durões ou não são nada, e é essa cosmovisão obsoleta, determinista, mesquinha que vitima o protagonista da trama.

Brady Blackburn, peão de rodeio obstinado e que se dedica em tempo integral à carreira, só vê sentido na vida sobre o lombo de um cavalo, disputando o lugar mais alto do pódio e recebendo as gordas premiações em dinheiro. Ao montar um animal um pouco mais arisco, Brady é colhido pelo infortúnio. A queda lhe provoca um traumatismo craniano severo e, a partir de então, ele terá de se defrontar com uma questão que nunca lhe ocorrera: como viver sem os cavalos, que lhe despertam tanta estima e ainda lhe garantiam o sustento? Os dias posteriores ao acidente, que se prolongam pela narrativa, podem lhe dar alguma pista de como não enlouquecer à medida que ele assuma a necessidade de um rigoroso exame de consciência quanto a suas atitudes para com quem lhe é próximo.

A alma do filme é mesmo Brady Jandreau, o protagonista. É difícil acreditar que Jandreau não seja ator profissional, o que acaba se configurando, da mesma forma que em “Nomadland”, como o grande trunfo do filme. Esse caubói literalmente cabeça dura, vinte anos presumíveis, capta a história e o espectador para si logo de cara. A sequência em que Blackburn pula da cama, como se uma nova vida o aguardasse, remove o curativo da cabeça e observa os grampos que mantém unidos os lábios do ferimento, introduz o publico ao que virá no decorrer de mais de cem minutos: um homem tentando recuperar sua história. Sua postura determinada frente às dificuldades, que ao mesmo tempo não deixa de assinalar uma delicadeza — e essa é outra das bem-vindas surpresas tanto do roteiro da diretora como do desempenho desse ator nada convencional —, não permite ao público arriscar nenhum prognóstico. Cercado por um cenário que deseja a todo custo sabotar qualquer chance de felicidade, tudo lhe recorda da vida nas arenas. Perto do que acontecera a Lane (Lane Scott), seu suplício não é nada. Seu melhor amigo, também interpretando a si mesmo, era alguém que lhe servia de espelho, que despertava a inspiração necessária quando queria só levar uma vida comum. Lane passara por tragédia parecida à de Jandreau, mas no caso dele a avaria foi muito além da estética. O ex-peão agora está preso a uma cadeira de rodas, paraplégico e sem conseguir falar devido à violência do golpe, que lhe provocou uma lesão cerebral de dimensões até então incertas.

Como tudo no filme prima pelo realismo, “Domando o Destino” apresenta no introito e no desfecho um cavaleiro a galope, o que sugere que a vida para Blackburn não pode ser de outra maneira. Decerto, esse herói típico, até caricato em dados momentos da narrativa, já teria entregado os pontos se fosse um homem como os outros — um dos momentos mais melancólicos do filme (e são muitos) é quando o ex-caubói tem de admitir a um grupo de admiradores que é ele mesmo quem está ali diante deles, tentando ganhar a vida como estoquista, a fim de, uma vez mais, juntar uns trocados para pagar a inscrição do próximo torneio. Mas as coisas não são assim tão simples; o feijão sempre vem antes do sonho e por essa razão Wayne (Tim Jandreau), seu pai, avisa que vai ter de vender o cavalo de Blackburn, sua derradeira lembrança dos tempos em que a vida lhe sorria às vezes. A forma como lida com esse novo conflito, o arco dramático que realmente importa na história, faz do trabalho de Chloé Zhao a obra-prima que é. E tudo isso parecendo se tratar de mero acaso.

 Cabendo a uma diretora asiática imprimir o registro de paradigmas masculinos caros ao americano médio que fracassam por uma ou outra razão — como já o fizera o taiwanês Ang Lee em “O Segredo de Brokeback Mountain” (2005) —, Chloé Zhao se prova uma artista sensível, se é que há artista digno desse nome que não o seja. A bela fotografia de Richards, que lembra a filmografia de Clint Eastwood como diretor — bem iluminada, com claros-escuros que de tão bem-marcados pontuam exatamente quando a trama vai se metamorfosear de uma conversa de Blackburn com seu cavalo para um atrito com alguém que lhe parece querer tirar proveito de Lilly, a irmã autista que se presta como seu único alento —, não deixa nenhuma margem para dúvida: o realismo de Chloé Zhao é um dos grandes achados do cinema contemporâneo.