Um dos melhores filmes de 2021 e principal concorrente ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2022 acaba de estrear na Netflix

Um dos melhores filmes de 2021 e principal concorrente ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2022 acaba de estrear na Netflix

Comings-of-age, dramas que se desdobram sobre os conflitos ao longo do amadurecimento de um personagem, sempre têm muito a nos dizer a respeito de nós mesmos. Federico Fellini (1920-1993), mestre do cinema e em particular desse gênero, é uma óbvia inspiração de Paolo Sorrentino em “A Mão de Deus” (2021), especialmente por serem ambos italianos, orgulhosos de suas origens e, o principal, de suas famílias. Mas as coincidências entre os dois não se obrigam a seguir nenhum roteiro.

Em Amarcord (1973), Fellini constrói a obra máxima de sua carreira voltando à Rimini de sua infância, belamente reconstituída nos estúdios da Cinecittà, na pele de Titta, um menino cheio de imaginação que vive cascavilhando a vizinhança. Aqueles eram tempos do fascismo mais desabrido, perseguições políticas, restrição de liberdade, mas mesmo assim Titta-Fellini encontra um meio de enxergar graça em viver. Vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1975, “Amarcord” ainda é o trabalho mais lírico de Fellini por combinar à perfeição a fotografia de Giuseppe Rottuno, figurinos e cenários extravagantes de Danilo Donati e a trilha sonora nostálgica de Nino Rota.

Sorrentino parece querer pavimentar uma trajetória que pelo menos chegue perto do sucesso que Fellini alcançou em sua vida profissional. Em “A Mão de Deus”, o diretor — cujo refinamento estético inegavelmente tornou-se marca registrada de seus trabalhos, vide “A Grande Beleza” (2013) —, fellinianamente, transpõe para a tela eventos que pontuaram sua intimidade. Os tipos que habitam seu filme são desabridamente caricatos, um aspecto explorado à larga pelo veterano, que jamais permitiu que nenhum deles resvalasse na vulgares — apesar de chegarem bem perto muitas vezes. Fellini, contudo, sempre dava um jeito para que o charme e o encanto de cada uma daquelas almas sobrepujassem sua natureza irregular, grotesca, bestial até. E Sorrentino segue o mestre.

“A Mão de Deus” remonta à Nápoles de 1986, quando da adolescência do diretor. Seu protagonista e alter ego, Fabietto Schiesi, uma interpretação mediúnica de Filippo Scotti, é um garoto de 17 anos, tímido e observador como poucos, à procura de sua própria identidade numa família numerosa, onipresente, invasiva. Ele é o único a deixar escapar algum laivo de vergonha diante da sucessão de eventos absurdos que definem o convívio com os parentes — e o imbróglio místico em que se mete a tia materna, Patrizia, de Luisa Ranieri, com um São Januário mostrado sob a figura de um fauno que corrompe senhoras casadas, logo no começo do longa, o ilustra bem. Acontecimentos como esses vão dando a tônica do roteiro, decerto seu trabalho mais despretensioso e mais preciso, em que os detalhes são fundamentais. Os instantes de (pouca) sensatez que permeiam as conversas, os olhares, os gestos — até comedidos, em se tratando de italianos, e italianos do Sul — precisam ser levados em conta a fim de que o todo faça sentido.

A cinebiografia nada usual levada a termo por Sorrentino supera qualquer expectativa. Partilhando inconfidências com o espectador, Fabietto-Sorrentino chega a travar um diálogo pouco emotivo, mas muito elucidante, com o cineasta Antonio Capuano, vivido por Ciro Capano, um dos guias do diretor. As autorreferências afetivas continuam, com ainda mais força, com a entrada em cena de Marchino, personagem de Marlon Joubert, aspirante a ator que se candidata ao teste para uma produção de Fellini cujo nome nunca conhecemos. Estendendo-se acerca das agruras de se ganhar a vida como artista, Sorrentino abre mais o leque do enredo e aborda as ilusões e fracassos do homem, representado pelo irmão mais velho de Fabietto, que aguarda por uma entrevista junto a um grupo de atores visivelmente frustrados. Esses são tipos embrutecidos por toda uma vida de privações, de incertezas, materializadas por rugas em semblantes carregados, roupas meio desconjuntadas, olhares perdidos no horizonte. Gente à espera de um milagre.

A relação entre o protagonista e seus pais, Saverio e Maria, de Toni Servillo e Teresa Saponangelo, ganha destaque na história à medida que Fabietto se depara com a dureza da vida real e se torna menos sonhador, embora os inúmeros dramas de família continuem a despertar o interesse de Sorrentino. O afeto que os une não se esvai mesmo depois do infortúnio que os colhe — e a aura tragicômica de “A Mão de Deus” ganha algum espaço, mesmo breve, graças a um chiste dito pelo patriarca antes de deixar a história. Fabietto e Marchino se aproximam ainda mais, até as outras despedidas que a vida lhes impõe.

O episódio envolvendo o título do filme, também o apelido nada honroso que o jogador Diego Armando Maradona (1960-2020) ganhou ao fazer o gol decisivo para que a seleção argentina vencesse a Copa de 1986, marcado com o punho, fica para escanteio — e que bom que tenha sido assim. Ainda que manifeste sua admiração por Maradona no introito, numa epígrafe de sua autoria (autoelogiosa, bem ao seu estilo), Paolo Sorrentino não deixa “A Mão de Deus” se perder em falsas polêmicas bestas, restando intacta a força da história, inclusive quando parece se render à modorra do calor napolitano no verão e deixa-se ficar um tanto letárgica — mas Fellini também era assim, e o bom cinema também é assim. Se a ambição de Sorrentino é transformar-se no Fellini de sua geração, pode dar-se por satisfeito: “A Mão de Deus” é o favorito ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2022. Oxalá tenha quereres cada vez mais ousados.