O filme da Netflix que abalará seu estado psicológico como se fosse uma serpente rastejando pelo seu corpo

O filme da Netflix que abalará seu estado psicológico como se fosse uma serpente rastejando pelo seu corpo

Brincando com imagens caras ao cinema desde “A Malvada” (1950), de Joseph L. Mankiewicz, em “The Perfection” o diretor Richard Shepard reprisa um dos argumentos mais fortes já usados no cinema, optando por deixar o público à deriva ao longo de grande parte do filme. O roteiro, escrito por Shepard, Eric C. Charmelo e Nicole Snyder faz questão de enaltecer algo de sujo, cuidadosamente oculto por trás da aparente meiguice de alguém acima de qualquer suspeita.

Allison Williams dá vida a Charlotte, ex-aluna modelo da Bachoff Academy of Music, conservatório nos arredores de Boston conhecido por reunir os melhores musicistas dos Estados Unidos. Logo se fica sabendo que a mãe de Charlotte está à morte, razão pela qual a garota resolve interromper os estudos a fim de se dedicar integralmente a assisti-la. A sutileza, a resistência em entregar o ouro logo numa primeira investida da audiência é o que chama a atenção de imediato em “The Perfection”. Não se pode declarar com absoluta certeza se a ida da violoncelista para o estaleiro será definitiva, uma vez que depois que a mãe de Charlotte morre, ela volta a procurar Anton Bachoff, o ex-mentor interpretado por Steven Weber, em viagem à cidade chinesa de Xangai com a mulher, Paloma, de Alaina Huffman. Os dois são os donos da escola em que a protagonista aprendera seus primeiros acordes, e a acolhida calorosa deles, que culmina no deslocamento de Charlotte para a China, para encontrá-los, lhe dá um fio de esperança quanto a reerguer a carreira abandonada ainda no ovo. Mas, apesar de muito jovem, o tempo para ela passou e os olhares de Anton, Alaina, do restante do público e, principalmente, da crítica especializada, se fixaram em Elizabeth, a Lizzie, performance brilhante de Logan Browning, a nova protegida do mecenas, que hoje ocupa o seu lugar.

A preterição de Charlotte acaba passando despercebida, graças à forma como Shepard consegue ir deixando a narrativa cada vez mais ambígua, mas o encontro com Logan vira a chave do personagem de Williams. O diretor é hábil em tentar disfarçar o desconforto de Charlotte em conhecer sua rival, e para isso se vale da estratégia menos óbvia, ou seja, dá a entender que as duas estão muito interessadas pela vida uma da outra — Charlotte, especialmente. Como no filme de Mankiewicz, Shepard explicita a admiração da novata, aqui já consagrada, pela veterana caída em desgraça, malgrado ainda seja capaz de reunir em seu entorno um séquito de pessoas verdadeiramente interessadas no que possa ter a partilhar. Charlotte é apenas uma das peças no vasto tabuleiro dos interesses vis que movem as relações humanas, e o sabe. Tanto que corresponde ao assédio da colega, também passa a flertar com ela, as duas acabam saindo e terminam a noite na cama. O envolvimento romântico pode ser farsesco para Charlotte, mas não o é para Lizzie, que a quer cada vez mais por perto e a convida a seguir viagem com ela, rumo ao oeste da China, de ônibus. Charlotte, que não tem nenhum outro lugar para ir, se mostra grata por ir junto, mas sua subserviência se reveste de uma razão especial de ser.

Em determinado ponto da viagem se dá a reviravolta do enredo. Williams e Browning têm o condão de deixar transparecer a aura de pânico em suas personagens, cada qual se utilizando do método  oposto: enquanto em Lizzie fica claro o sofrimento — primeiro físico, depois também mental, já que o terror a domina —, despertado pela constatação de não ter a mais pálida ideia do que está acontecendo, Charlotte igualmente tem de se obrigar a fazer a agora amiga notar que ela partilha de seu medo, interessante exercício cênico, dado ser ela mesma quem provocara tudo aquilo.  Nessa quadra da história, Shepard usa o recurso de uma potente analepse e faz com que todo o filme retroceda, a fim de apresentar eventos sobre os quais a narrativa já havia se debruçado, mas preenchendo as lacunas que deixara de propósito com dados novos e uma conjuntura totalmente diversa, que retrata a violência desumana que colhe a personagem de Browning. É quando Charlotte e Lizzie trocam de lugar, finalmente, para, na sequência final, virarem uma só.

“The Perfection” não se deixa vencer pelo componente de escândalo que adquire força crescente à medida que a história se desenrola, por mais urgente que seja mantê-los na ordem do dia, e apresenta um todo coeso, exatamente por não relaxar depois de uma trama enxuta, mas que de tão bem contada, dá a impressão de não precisar de nem um minuto a mais. O talento de Richard Shepard confirma a máxima que prega a simplicidade, por mais árduo que seja se chegar a ela.