Com roteiro psicologicamente rico e habilmente construído, filme de Steven Soderbergh é um pequeno tesouro na Netflix Peter Andrews / Netflix

Com roteiro psicologicamente rico e habilmente construído, filme de Steven Soderbergh é um pequeno tesouro na Netflix

Quase anos depois de ter sido alijado da direção de “O Homem que Mudou o Jogo” (2011), que acabando ficando com Bennett Miller, por “interferências indevidas no roteiro”, Steven Soderbergh resolve meter a mão na massa — e em cumbuca — outra vez. Agora elaborando um drama complexo, detalhista, repleto de camadas sobre basquete, e feito com um smartphone, Soderbergh volta à competição e acerta uma cesta de três pontos do meio da quadra.

O diretor ficara tão desgostoso com o rumo que o cinema estava tomando que chegara a anunciar sua aposentadoria algumas semanas depois da demissão, em 2009, mas “High Flying Bird” (2019), prova que Soderbergh ainda tem muito chão pela frente. Contando com um elenco de peso, capitaneado pelo talento de André Holland, o filme vai muito além de expor as vísceras do submundo do basquete, que disputa lance a lance o título de esporte mais popular dos Estados Unidos com o futebol americano. A diferença, desfavorável para as competições de quadra, é que os times são compostos por 75% de negros. E a questão racial — e, mais precisamente, a tensão racial —, tão presente no cotidiano da América, também se impõe no texto de Tarell Alvin McCraney, ganhador do Oscar de Melhor Roteiro Adaptado por Moonlight em 2016.

Ray Burke, personagem de Holland, é um empresário que agencia atletas que leva uma rasteira inesperada do destino. Erick Scott, vivido por Melvin Gregg, havia sido a grande aposta do agente para a temporada que se avizinha, mas um imbróglio protagonizado pela NBA, a associação que, em tese, deveria representar o interesse dos jogadores, resultara na suspensão do pagamento para novas aquisições. Um jogo de soma zero, em que Scott não consegue ganhar e Burke perde, perde muito — e pode ficar sem nada.

A abordagem incisiva de Soderbergh — e louve-se o roteiro de McCraney — se ampara na força do basquete na sociedade americana para tecer uma alegoria que remete à eterna influência do regime escravocrata na composição do pensamento médio do país, argumento lembrado com mais ênfase, malgrado de maneira jocosa, pelo treinador Spencer, personagem do veterano Bill Duke.

Definitivamente, “High Flying Bird” não é o típico filme sobre disputas esportivas, com tipos que se adequam de cara ao mundo de que fazem parte depois de uma batalha encarniçada com a vida, em que poderiam ter levado a pior. Como em “Menina de Ouro” (2004), de Clint Eastwood, Scott, mesmo já admitido no clube dos vencedores, vê a possibilidade de tudo ir ao chão, graças a uma circunstância que não poderia prever, mas é parte da trajetória profissional de qualquer atleta. Soderbergh evidencia seu desprezo pelo sistema estabelecido, representado no filme pelo mundo do esporte, mais exatamente do basquete — perniciosamente gerido pela NBA —, mas que poderia tomar a forma da moda, à luz do que faz David Frankel em “O Diabo Veste Prada” (2006), ou “Casa Gucci” (2021), dirigido por Ridley Scott.

Talvez ainda meio traumatizado, em “High Flying Bird” Soderbergh resolvera manter a curta acerca de tudo que envolvesse a produção do filme, inclusive a fotografia e mesmo aspectos de natureza mais voltada à técnica, como a edição. Essas duas etapas da concepção da trama igualmente couberam a ele, ainda que não se veja seu nome nos créditos, pelo menos não como se fez conhecido no mundo todo. É que o diretor usa os pseudônimos de Peter Andrew, uma junção do primeiro nome do pai e seu sobrenome do meio, e Mary Ann Bernard a fim de assinar essas contribuições, fazendo desse seu trabalho um filme de autor dos mais categóricos.

“High Flying Bird” é uma história dotada de alma, que se aprofunda no que pretende narrar, predicado que se comprova com as participações de astros da liga de basquete americana a exemplo de Reggie Johnson, Donovan Mitchell e Karl-Anthony Towns, que em entrevistas curtas inseridas na narrativa organicamente, esquadrinham as particularidades de um ídolo, e os malogros pelos quais tiveram de passar, como o tipo encarnado por Melvin Gregg, no início da carreira. O modo que Soderbergh escolhe para se dirigir aos atletas, sob a mesma perspectiva, se revela para eles tão intimidador que os jogadores raramente encaram a câmera. Diante do diretor e do público, ficam parecendo pobres meninos ricos que não sabem muito bem por que estão ali, tampouco o que fazer com suas fortunas.

Soderbergh faz em “High Flying Bird” uma crítica ácida — ainda que divertida — aos bastidores de um dos esportes que mais dinheiro movimenta no mundo, mesmo que envolto numa névoa impenetrável de mesquinharia, sordidez e revanchismos pueris. A vida, como o basquete, também tem regras, e uma delas prega que para toda ação há uma reação correspondente, e na mesma medida. Desde então, Steven Soderbergh só ganha.