Novo filme da Netflix é para aqueles dias em que tudo o que você precisa é esquecer os problemas e relaxar

Novo filme da Netflix é para aqueles dias em que tudo o que você precisa é esquecer os problemas e relaxar

A jornada do homem sobre a Terra é longa (para alguns), prazerosa (para muitos) e solitária (para todos). Em uma ou outra proporção, todos nos sentimos sós, deslocados, incapazes de nos adequarmos ao mundo que nos rodeia desde o instante em que vemos a luz do dia pela primeira vez, como se nascêssemos com quatro pernas, um par de braços a mais, um rosto biforme, e em algum momento que a parteira se tivesse descuidado, alguém houvesse sumido com tudo isso.

É exatamente esse o argumento usado pelo filósofo grego Platão (428 a.C- 348 a.C) a fim de descrever a busca do individuo por alguém que nos complete. Em “O Banquete”, possivelmente escrito em 380 a.C, um de seus trabalhos fundamentais para a filosofia, a compreensão das doutrinas religiosas e da ciência, Platão se vale da mitologia para ilustrar dessa forma a mortificação do gênero humano frente à ausência do amor — que mesmo quando não faz tanta falta assim, inquieta justamente por isso —, de ter alguém com quem se possa contar, ainda que se saiba que o amor é muito mais que ter uma pessoa com quem comentar as notícias do primeiro jornal.

Platão foi tão revolucionário que é citado até em comédias românticas. Como “Você nem Imagina” (2020), dirigido pela sino-americana Alice Wu, “Um Match Surpresa” (2021), do costa-riquenho Hernán Jiménez García, também reproduz a metáfora do polímata grego ao apresentar Natalie Bauer, articulista do “Soash”, um pequeno jornal de Los Angeles, que se especializou em redigir textos em que expõe suas desventuras ao procurar o homem que preencha todas as muitas condições que estabelece quanto a se tornar seu namorado. A personagem de Nina Dobrev é incumbida por seu editor, papel de Matty Finochio, de escrever outra crítica sobre mais um encontro desastrado, não por acaso o nome da coluna. Depois de manter uma conversa que foge das obviedades comuns nessas situações (além do recebimento de fotos eróticas que ela não pediu e da urgência pela retribuição dos nudes), ela se convence de que Josh (Jimmy O. Yang) é o cara. O entusiasmo é tanto que ela persuade o chefe a encampar a ideia, subvertendo por completo o conceito da página, viaja cinco mil quilômetros, atravessando os Estados Unidos de ponta a ponta até Lake Placid, em Nova York, para se encontrar com sua alma gêmea, mas a realidade a atropela novamente: Josh usara as fotos de Tag (Darren Barnet), um seu conhecido, para se aproximar dela.

O mote das trapalhadas por trás do mais humano dos sentimentos e as inadequações que suscita em nós mesmos quando nos damos conta de que o amor, como tudo na vida, também é suscetível a falhas — algumas das questões colaterais que o envolvem — faz parte do cinema e constitui muito de sua graça. No caso de Natalie e Josh, muito mais que o tema da rejeição da jornalista ao tipo vivido por Yang, motivada pelos parâmetros estéticos determinados por ela, e que ele não cumpre — o que Josh já suspeitava que iria acontecer, o que o leva a postar as fotos de Tag como se fossem suas —, há o choque cultural. Natalie, a típica mulher cosmopolita, descolada, independente e sem ninguém no mundo, cai de paraquedas no mundo de Josh, um sino-americano nascido e criado numa cidade provinciana, da qual nunca saiu, modesto, nada ambicioso e aferrado às tradições de sua família numerosa e onipresente.

À exceção do componente étnico, o roteiro de Daniel Mackey e Rebecca Ewing se assemelha muito ao de “Um Lugar Chamado Notting Hill” (1999), escrito por Richard Curtis e dirigido por Roger Michell (1956-2021), embora se imponham algumas distinções. Tanto na produção de 1999 como em “Um Match Surpresa”, a mocinha que encontra o amor num lugar inusitado e que, queira ou não, é-lhe hostil — como canta a diva pop Rihanna — é um ponto central a fim de se entender uma e outro personagem. Para tal, Dobrev e Yang se mostram completamente absortos pela atmosfera de estranhamento mútuo entre Natalie e Josh, malgrado a trama empregue alguns clichês surrados do gênero, como falar de tolerância e amor ao próximo — a despeito de se querer esse próximo como muito mais do que apenas próximo — tendo como pano de fundo as festas de fim de ano, o que gera situações previsíveis, mas sempre graciosas. A sacada do dueto dos protagonistas entoando “Baby, It’s Cold Outside”, composta por Frank Loesser (1910-1969) em 1944, famosa na voz de Frank Sinatra (1915-1998) — canção tornada maldita pelo politicamente correto por sugerir violência sexual, quando só fala de um homem que responde de forma grosseira à mulher que magoou — é um dos pontos altos do filme, assim como o motivo que faz o improvável casal se unir, mesmo que Natalie ferva de raiva por Josh, que por sua vez não dá o braço a torcer.

A mensagem que fica depois dos quase 110 minutos de projeção de “Um Match Surpresa” é tão reveladora quanto já conhecida. Como para o sacerdócio, conforme nos diz Mateus nas Escrituras, no amor também muitos são os chamados. Mas poucos os escolhidos.