O drama shakespeariano da Netflix que deixará você sem fôlego e sem piscar

O drama shakespeariano da Netflix que deixará você sem fôlego e sem piscar

Um dos principais componentes de um bom filme — em especial dos se prestam a contar uma história sob perspectivas diversas, abrangendo, de propósito ou não, o maior número de reviravoltas possível — é não se deixar conduzir pela vontade do público, sempre muito instável. A narrativa de “Quem Com Ferro Fere” tem essa premissa por base.

O argumento do filme dirigido pelo espanhol Paco Plaza em 2018 pode ser apreendido à luz de um leque amplo de interpretações, da psicanálise a Shakespeare, passando ainda pelas tragédias da Grécia Antiga e pelas telenovelas brasileiras contemporâneas — que, espertamente, desde sempre conseguiram equacionar muito bem essas três variáveis e não raro entregaram obras de gênio, goste-se ou não delas, tenha-se o preconceito que se tiver. Produções que falam de destino, do livre arbítrio, da incompreensão do homem diante dos (des)caminhos que a existência toma frente a circunstâncias cuja previsão era de todo impossível são, disparadas, as que verdadeiramente tocam o coração do público e movimentam a audiência, seja em que veículo for, na sétima arte, na literatura ou na televisão. Nesta última, “O Clone” (2001), escrita por Glória Perez e com direção-geral de Jayme Monjardim, é decerto a que chegou mais perto quanto a se tentar responder as tantas perguntas do pobre gênero humano. É uma verdadeira graça poder reencontrar um texto tão rico vinte anos depois, com a maturidade e a bagagem intelectual que duas décadas de vida podem dar a quem as procura. Admito que, hoje, estou fascinado pela novela — e, por evidente, meio abobalhado também. Espero que meu editor me dê a oportunidade de trazer a este espaço um artigo sobre “O Clone”, que se desdobra sobre o pensamento filosófico com a mesma energia que os lojistas têm para faturar, levando às prateleiras de seus estabelecimentos bijuterias que imitavam as vistas em Jade, a anti-heroína do folhetim. Pano rápido.

Assim como “O Clone”, “Quem Com Ferro Fere” também se estende sobre quão traiçoeiro pode ser o fado, que à luz do ponto de vista freudiano é a junção de duas pulsões, a de vida e a de morte e, claro, o que cada um faz com elas. No enredo, Plaza deixa clara a intenção de alterná-las cena a cena e mostrar como as reações advindas de um outro cenário não se excluem, mas se complementam. O diretor se vale desse expediente ao longo do primeiro ato em vários momentos, como quando o enfermeiro Mario, do premiado Luis Tosar, fica sabendo que Antonio Padín, um traficante de drogas que já deveria ter se retirado do mercado faz tempo (como se isso acontecesse…), é autorizado a cumprir o que resta de sua pena em regime domiciliar, por causa de um câncer terminal, mas prefere se internar na clínica em que o protagonista trabalha. A sequência em que se dá conta de que Antonio, personagem de Xan Cejudo (1947-2018), é o homem que aliciou o irmão, Sergio, 25 anos antes, é um dos pontos altos da trama. Diante do espelho do quarto de Antonio, chamado pelo cuidador de Alcaide, Mario encara não só a si mesmo, mas o grande, o maior dilema de sua vida, dúvida capaz de assaltar qualquer um, por mais reta que seja sua conduta frente à vida: deve ou não vingar Sergio, uma vez que a heroína que o Alcaide fornecia ao rapaz o viciou, e esse vício o matou? Mario cede à pulsão de morte, o que irá desembocar na sua perdição — e de uma forma tão crua e tão perversa como muito poucas vezes o cinema teve a coragem de registrar.

A escolha de Sofia para Mario não é o fulcro do roteiro, como se disse antes, e sim a resolução que o personagem lhe reservara. Mario usa das mesmas artimanhas de que o Alcaide se valera contra seu irmão, com a diferença, a desfavor da índole do enfermeiro, que Sergio para ele era um cliente como qualquer outro, isto é, o velho não tivera a intenção de viciá-lo, tampouco levá-lo ao fundo de um poço sem saída possível: ele o teria feito com outra pessoa da mesma forma. Mario, não; o cuidador do Alcaide quer exterminá-lo, faz disso seu projeto de vida, deixando em segundo plano o casamento com Julia (María Vázquez) e o filho que terão em breve. É tão repulsiva a conduta que o protagonista traz para si — resumida e sublinhada sob a noção de que ele se utiliza de seu próprio ofício para alcançar um objetivo particular e completamente subvertido, já que seu papel deveria ser, não o de salvar o Alcaide, porque o câncer já o havia dominado, mas oferecer ao paciente a assistência paliativa necessária a fim de tornar seu tormento menos insuportável — que, pouco a pouco, o feitiço vai virando, bem como a sorte do anti-herói.

A dada altura do enredo, Paco Plaza insinua que Mario demonstra algum arrependimento da monstruosidade que perpetra contra o Alcaide, ele próprio um tipo monstruoso, ao contrário do que se depreende de tragédias gregas como “Édipo Rei”, escrita por Sófocles (496 a.C-405 a.C.) por volta de 427 a.C., ou “Medeia”, de Eurípedes (480 a.C.-406 a.C.), levada aos palcos em 431 a.C., cujos protagonistas sabem muito bem o que estão fazendo e, mais, igualmente desejam que tudo se dê dessa forma. Sua postura se coaduna melhor com a de outro anti-herói, o impulsivo e leviano Hamlet, protagonista da peça homônima de William Shakespeare (1564-1616), de 1603, que se crê uma vítima do destino e passa a viver para encontrar uma oportunidade que lhe permita dar termo à sua vendeta, mas apenas respondendo ao golpe que a vida lhe pespega, e mesmo assim sem muita convicção. Certamente uma das justificativas que provocam em Mario essas capitulações é a entrada em cena de Toño (Ismael Martínez) e Kike (Enric Auquer), os filhos do Alcaide, tão delinquentes quanto o pai, mas muito menos espertos, tanto que ao tentarem levar adiante uma negociação entre narcotraficantes colombianos e mafiosos chineses, metem os pés pelas mãos e o saldo é cadeia para Kike e toda a escória do submundo no encalço de seu irmão mais velho. Ao se inteirar do poder que Mario exerce sobre o pai — muito maior do que supunham, como se pode constatar por uma medida que o Alcaide toma contra os filhos e que beneficia o enfermeiro —, Toño bota as cartas na mesa, falando também em nome do irmão: ou Mario se dedica a persuadir o chefão a ajudá-los ou ele morre antes que seu assistido. A partir desse instante, a narrativa segue uma trajetória absolutamente díspar do que se vinha observando até então, com a revelação de alguns mistérios — o Alcaide já sabia acerca do passado de seu cuidador, que destarte fica ainda mais impiedoso e obstinado, a ponto de não medir mesmo as consequências, ignorar as ameaças de Toño e matar o homem que considera o carrasco de Sergio —, cenas pontuadas por perseguições, tiroteios e enquadramentos em que se emprega o gore, guardando para o desfecho, seco, duro, revoltante, a mensagem que quer transmitir.

Ao apresentar um dilema existencial da maior relevância, “Quem Com Ferro Fere”, emoldurado pela ótima trilha de Maika Makovski, chega ao seu grand finale, um dos mais tristes — e brutais, e poéticos — do cinema, frise-se mais uma vez.  Exatamente como diz o título.