Apesar de loucas, tronchas e solitárias, as pessoas parecem flores, finalmente Foto: Ulf Andersson

Apesar de loucas, tronchas e solitárias, as pessoas parecem flores, finalmente

Você fica tão sozinho às vezes que até faz sentido. Mas, eu não queria mais ficar sozinho. Não naquele dia. Hollywood era coisa do passado. Andava à toa em San Pedro, ao sul de lugar nenhum. Buscava inspiração para escrever um livro sobre o amor, sobre gatos, sobre bêbados e bebidas, o que surgisse primeiro como inspiração. Estava saturado de escrever cartas na rua para ninguém. Sentia-me um fodido ao inventar personagens que, de fato, nunca existiram. Mulheres, por exemplo. Uma coisa era escrever para não enlouquecer. Outra coisa era viver como um factótum, um zero a esquerda, essa loucura roubada que não desejo a ninguém a não ser a mim mesmo.

Comi um misto-quente numa lanchonete de rua chamada Pulp. Lembrei-me logo da dancinha do John Travolta com a Uma Thurman em Pulp Fiction. Enquanto devorava um Misto Quente. Observava as pessoas indo e vindo, todos concentrados nos seus delírios cotidianos. Uma mulher estonteante passou por mim. Parecia tão apetitosa e quente quanto o meu lanche. O amor é um cão dos diabos. Se não for para ir até o fim, nem tente. Cogitei segui-la. Abordá-la. Apresentar-me como um escritor famoso ainda desconhecido pela grande mídia, uma joia bruta, um cronista com uma carreira literária meteórica — no sentido literal e catastrófico. Desisti da ideia mais rápido do que o evacuar de um gnu com intestinos irritáveis. Aborreci-me. Nenhuma mulher em mínimo estado de saúde física e mental daria crédito para um sujeito de vida desalmada. E era assim que eu me sentia, mais por baixo do que diferencial de sapo.

Eram três da tarde. Estava a fim de entrar numa fria. Adentrei num pub. Faltavam dez minutos para nunca mais. Para mim, era um tempo de voo para lugar algum. O estabelecimento parecia vulgar, sujo e malcheiroso. Tocava o Hino da Tormenta, a mais dantesca e grudenta balada-em-três-acordes já gravada por uma dupla do cenário sertanejo-universitário. Era nada do que eu precisava. Pedi um Cuspe Sour para o atendente, um asiático efeminado que devia ter piercings até no rabo. O barman foi gentil comigo. De maneira geral, eu me dava bem com os gays, desde que não se aproveitassem das minhas bebedeiras descontroladas para ereções, ejaculações e exibicionismos.

Notei que um sujeito vinha do banheiro, em direção ao bar. Cambaleava como um joão-bobo. Parecia estar para lá de Bagdá. Devia contar sessenta e tantos anos. Barba mal feita. Descabelado. Barrigudo. Cara de areia-mijada. Trajava um paletó xadrez, cafona, que exalava naftalina. Meus olhos arderam. Apesar do estado deplorável daquele desconhecido, senti uma atração forte e imediata por ele. Nada de cunho sexual, obviamente. Seres humanos exóticos eram quase sempre cativantes.

— Tem um cara no banheiro, vestido como a Marylin Monroe, chupando pirocas por um dólar, ele disse.

— Não estou interessado, meu velho. Qual é a sua graça?

— Charles Bukowski. Mas, pode me chamar de Buk, se você quiser. Ou da porra do nome que lhe der na telha.

— Beleza, Buk. Meu nome é Vencio. Eberth Vencio.

— (ele sorriu) Você fala como se fosse Bond. James Bond. Maldita modernidade. Estão destruindo a reputação do 007. Daniel Craig é uma bosta. O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio. O velho Sean Connery deve estar se remoendo de raiva dentro do caixão. Era o meu predileto.

— O meu também.

— O que você faz na vida, meu chapa? Chupador de rolas, também?

— (risos) Escrevo as notas de um velho safado.

— Do que se trata?

— São crônicas de um amor louco. Um fabulário geral do delírio cotidiano, se é que me entende.

— Realmente, não estou entendo porra nenhuma do que você está falando. Você é alguma espécie de escritor-fantasma de um velhote da miscelânea septuagenária do condado? É isso mesmo, don?

— Bem, na verdade, eu só transcrevo. O sujeito não tem mais condições físicas para escrever. Doença de Parkinson, sabe como é. Então, ele dita as palavras, as frases, os parágrafos, os textos, a droga do romance inteiro. Daí eu registro em pedaços de um caderno manchado de vinho.

— Parece uma droga de emprego.

— O velho safado me paga bem. Além do mais, aproveito o ensejo para fazer uns vales na neta dele.

— A moça é bonita?

— Provavelmente, a mulher mais linda da cidade. O branco dos olhos lembra os de Scarlett Johansson.

— Grande rabo, então. É perfeita.

— Eu que o diga. Sou fã da Scarlett. E da Paolla Oliveira. E da Marylin Monroe, também.

— Marylin já morreu, caralho.

— Morreu nada. Foi você mesmo quem disse que ela tá lá no banheiro fazendo boquetes na clientela.

— Quer ir mijar agora, gracinha?

— Nem fodendo. (risos) E você, Buk. O que faz na vida?

— Eu inspiro as pessoas.

— Como assim, inspira as pessoas? Você é uma celebridade e ninguém me avisou? Com todo respeito, meu chapa, mas, acho que nunca ouvi falar de você. Um sobrenome tão estranho. Bukowski… É polonês? Russo? Tcheco?

— Alemão. Nasci na Alemanha, mas, fui criado nos malditos Estados Unidos da América. Você me parece um tanto tapado para quem trabalha como transcritor de bobagens de um sujeito com o pé na cova.
— Pense na neta, Buk.

— Hoje à noite tocarei uma punheta por ela.

— Pode acreditar que vale a pena. Um dia, perguntou para mim se eu sabia o que era o amor.

— Pergunta desgraçada. E o que você disse?

— Que o amor é tudo o que nós dissemos que não era.

— Uau… Parece tão profundo quanto uma buceta. Espero que você tenha honrado as calças que veste e chupado aquela xoxotinha ariana como se fosse uma manga madura.

— (risos) Me diga, Buk. Como você inspira as pessoas?

— Sou poeta. E aposto em cavalos também, só para variar.

— E dá para viver de poesia?

— Nem tente. A culpa é de Deus. O maldito Deus arrancando esses poemas da minha cabeça. Sabe quando você se sente queimando na água, afogando-se na chama? Se não fosse pelos cavalos, estaria fodido e mal pago.

— Sim. Claro. É uma espécie de tempestade para os vivos e para os mortos.

— Matou a pau, meu camarada. Por acaso, tem um Jeronimo’s aí no bolso?

— Eu não fumo, Buk.
— Não sabe o que está perdendo. Vou ali tirar uma água do joelho.

— Precisa de um dólar? (risos)

— Tá de brincadeira? É a Marylin quem paga para os clientes. Vou em busca do meu terceiro dólar. Que Deus me ajude.

Apesar de loucas, tronchas e solitárias, as pessoas pareciam flores, finalmente.

*Para a produção deste texto foram utilizados títulos de livros e fragmentos da obra literária de Charles Bukowski