Perturbador e brutal, filme da Netflix prende o espectador do início ao fim

Perturbador e brutal, filme da Netflix prende o espectador do início ao fim

Entre um texto bem desenvolvido e a apresentação de imagens potentes, “O Diabo de Cada Dia” (2020) fica com os dois. Valendo-se da narração da história em off — isto é, sem que o locutor se faca conhecer —, boa parte do filme do diretor americano Antonio Campos, filho do jornalista mineiro Lucas Mendes, opta por transitar entre dois tempos, passado e futuro, sem prejuízo nem de um nem do outro.

Não é todo filme que pode se jactar de levar a trama sem maiores percalços usando expediente tão arriscado — aliás, é justamente por meio desse recurso que o enredo se torna de fato harmonioso. Campos despeja sobre o público uma pletora de informações, todas em alguma medida ligadas entre si, e cuja absorção se torna mais orgânica graças à explanação do que é mostrado, feita à luz da metalinguagem, uma vez que é Donald Ray Pollock — autor do romance em que “O Diabo de Cada Dia” se baseia — quem conta a história. O que deixa clara a importância que o diretor deseja conferir ao recurso.

Não se pode dizer que o roteiro não tenha vácuos e siga em uniformidade do princípio ao fim, o que também parece ter sido uma questão de preferência consciente, visando a chamar o espectador a tomar parte nos rumos da produção ao máximo. Campos deixa larga margem para que a audiência teça suas próprias conjecturas sobre o que é levado à tela, como se fosse mesmo de literatura, de um livro, respeitando — e mesmo venerando — o trabalho de Pollock. Há momentos em que o diretor pesa a mão, sugerindo quase didaticamente as intenções do filme, povoado à mancheia de personagens malditos que, de uma forma ou de outra, se permitiram corromper pela profissão de uma fé e pelo discurso religioso.

O começo do filme já deixa bastante claro o que se vai assistir ao longo de quase duas horas e meia de projeção. Willard Russell, encarnado com vivacidade por Bill Skarsgård, ex-combatente da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e da Guerra do Vietnã (1955-1975), volta para Knockemstiff, Ohio, ainda assombrado pelas tantas memórias dos horrores aos quais tivera de se submeter. O único respiro a que “O Diabo de Cada Dia” se permite é exatamente nesse introito breve, momento em que se desdobra uma espécie de manual do primeiro tipo central da história. Russell, conforme se vê na sequência do café, é um romântico; depois da passagem traumática pelo front, pulsa nele o sentimento amoroso, a vontade de se apaixonar. Encontra a candidata à esposa perfeita já nessa volta incipiente à vida normal, ao se encantar pela garçonete, Charlotte, de Haley Bennett, que além de considerar bonita, é também doce e observa princípios cristãos — malgrado até esse ponto o argumento religioso não ser forte o bastante quanto a se saber em que proporção vai ser trabalhado. Algum tempo depois, Russell e Charlotte, já casados e pais de Arvin, cuidam da vida a dois, como um homem e uma mulher comuns. Até que Charlotte é diagnosticada com um câncer em estágio muito avançado e morre da doença, a primeira reviravolta da trama.

O Meio-Oeste americano se presta ao cenário irretocável para as narrativas de desintegração moral, violência, caos, tragédia, repleto desses personagens dotados de uma pretensa sabedoria cósmica. Antes que Charlotte morresse, Russell se investe de sua devoção para salvar a esposa, convicto de que vai alcançar tal graça, afinal para Deus nada é impossível. Só o que consegue é traumatizar o filho, uma vez que sacrifica Jack, o cachorro de Arvin, em nome da pretensa expiação dos pecados de Charlotte, que decerto é a única a se poder considerar uma alma verdadeiramente pia em todo o filme. A partir de então, a unidade que talvez existisse no núcleo degringola de vez e da pior forma: Russell não aguenta o baque e se suicida. Arvin ficaria relegado à própria sorte, não fosse a avó Emma, com quem o garoto passa a morar.

Dá-se um corte e o enredo avança 10 anos. Arvin passa a, finalmente, conviver com as armadilhas de uma narrativa religiosa apodrecida, ora mostrada por meio do reverendo Preston Teagardin, papel de Robert Pattinson — um pregador que não tarda a conquistar o respeito da comunidade que passa a atender, devido à ausência do antigo pastor. Pattinson, em seu melhor desempenho como ator, dá vida a um líder religioso que corrompe em vez de redimir, e cuja especialidade é seduzir e seviciar sexualmente moças ingênuas. É o que faz com Lenora, de Mia Wasikowska, a menina que a avó de Arvin criava, que ao se perceber grávida do pastor, vai se aconselhar com ele e tem como recomendação fazer um aborto. Lenora, tal como o pai de Arvin, não suporta o golpe e também se mata, com a diferença que o faz precisamente para não cometer pecado semelhante, contudo ainda mais grave, já que envolveria tirar uma vida que não a sua própria.

Abordando o mal sob as infinitas naturezas sob as quais é capaz de se manifestar, “O Diabo de Cada Dia”, contando com a direção meticulosa de Antonio Campos, se desenrola sobre as grandes questões do homem à luz de sua fragilidade espiritual, que, à medida que o curso da história se adianta, se torna ainda mais evidente. Como sugere Donald Ray Pollock em seu livro, de que nasceu o filme, toda a vigilância quanto a combater as trevas é pouco.