O filme lançado em 2021 pelo Amazon Prime Video que tem 100% de avaliações positivas

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O argumento de que se vale Regina King em “Uma Noite em Miami” (2020) é tão poderoso — e tão urgente — que funciona tanto no teatro como no cinema. Com o filme, terceira experiência de King como diretora, são exploradas sendas novas quanto a se chegar a respostas para uma das questões mais controversas da sociedade americana ainda hoje.

“Uma Noite em Miami” sugere um encontro fictício entre quatro expoentes da cultura pop dos Estados Unidos no pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945): Malcolm X (1925-1965), vivido por Kingsley Ben-Adir, ativista pelos direitos civis dos negros; o Rei do Soul Sam Cooke (1931-1964), papel de Leslie Odom Jr.; o ex-jogador de futebol americano Jim Brown, personagem de Aldis Hodge, que depois passa a trilhar uma carreira de sucesso como ator em Hollywood; e o pugilista Cassius Clay (1942-2016), Muhammad Ali depois da conversão ao islã, interpretado por Eli Goree. Na história, os quatro se reúnem num quarto de hotel para celebrar a conquista do cinturão dos pesos-pesados por Ali, enquanto cresciam as diferenças de Malcolm com Elijah Muhammad (1897-1975), outro líder negro, bem como seu antagonismo em relação ao FBI, o departamento federal de investigações americano, comandado com mãos de ferro entre 1935 e 1972 por J. Edgar Hoover (1895-1972).

As alusões a essas figuras de vulto do movimento cívico, das artes e do esporte deixam clara a vontade de Regina King quanto a levantar a bola para o debate sem tergiversações sobre o que une esses quatro homens. Acima da questão racial, o quarteto de amigos se posiciona cada um à sua maneira sobre a necessidade de se discutir temas amargos e repelentes como injúria racial, racismo, discriminação étnica e o que hoje se conhece sob o nome higienizado de assédio moral. Sua intenção é não fugir ao que propõe a peça homônima de Ken Powers, que também assina o roteiro, isto é, usar cenários limitados e não florear a direção, a fim de centrar fogo nas falas dos personagens, que defendem formas diversas de se abordar a segregação racial nos Estados Unidos. O amálgama do pensamento dos quatro seria o quinto e mais importante elemento da trama, preterindo a aura de celebridade neles e fazendo sobressair o homem em cada um. Malcolm X, por exemplo, é tomado à luz de um pai de família simples, que pergunta à mulher pelas filhas, ao passo que tenta esconder sua instabilidade emocional, seu desalento frente à vida. 

Os enquadramentos precisos e espontâneos de King valorizam as performances, mormente as de Ben-Adir e Odom Jr. Na pele de Malcolm X e Sam Cooke, os dois ressaltam a divergência de visões de mundo entre o militante e o cantor; o ativista fazia questão de, sempre que podia, debater com Cooke quanto ao talento deste, um recurso poderoso desperdiçado em canções de amor para embalar o romance dos brancos, segundo disparava o fogo amigo do franco-atirador das tribunas. O artista, claro, não deixava por menos e contra-argumentava, alegando que era justamente aí que residia o vigor de sua mensagem — Cooke chegara a fundar, em 1961, uma gravadora especializada em divulgar apenas intérpretes negros, a SAR. Cada vez mais empenhada em remover o verniz mítico de seus protagonistas, a diretora se concentra em esmiuçar detalhes da vida dos quatro, como se estender sobre a intimidade de Cassius Clay, pouco conhecida do grande público. Voltando aos embates entre Malcolm X e Sam Cooke, o desempenho de Odom Jr. rouba a cena, tanto que o cantor-ator recebeu uma indicação ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante em 2021.

A preferência por se ater à esfera privada dos biografados se desdobra para a escolha de recintos mais íntimos, às vezes mesmo claustrofóbicos: King filma no terraço de um prédio, num quarto de hotel, dentro de um carro. Como se o cerco se fechasse a cada frame, a iminência do perigo na vida dos quatro se acentua, uma vez que ousaram se insurgir contra uma das sociedades mais preconceituosas da história, patrocinada pelo Estado mais endinheirado do mundo. A experiência incipiente de Regina King conta a seu favor na medida em que trabalha arcos dramáticos permanentemente duros sem muita interferência de recursos técnicos como trilha sonora e fotografia. O que se impõe de verdade é o roteiro, é a fala de cada personagem, o que dá a “Uma Noite em Miami” a natureza de teatro filmado, conforme também se observa em “Fences — Um Limite entre Nós” (2016), dirigido por Denzel Washington, um veterano diante das câmeras que, como King — Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por “Se a Rua Beale Falasse”, de 2018 — ensaia se aventurar mais e mais na direção. Recurso que, claro, divide opiniões.

Optando pela simplicidade em “Uma Noite em Miami”, Regina King entrega um filme que reverbera o caráter de denúncia no que diz respeito à violação dos direitos humanos — sobretudo os da população negra norte-americana, ainda hoje —, dando respaldo a outras produções do gênero, caso do documentário “As Duas Mortes de Sam Cooke” (2019), de Kelly Duane de la Vega, que investiga o mistério por trás da versão oficial do fim do maior soulman americano em 1964, aos 33 anos, uma história sinistra que, em alguma proporção, se relaciona à morte de Malcolm X, no ano seguinte. Numa empreitada corajosa, King tirou apenas um dos incontáveis véus sobre o racismo na América. Falta muito para essa guerra acabar.