O premiadíssimo filme da Netflix que você não assistiu

O premiadíssimo filme da Netflix que você não assistiu

O caminho de um ator para o sucesso é quase sempre longo, pedregoso e instável. Tanto pior se esse ator, algum dia, por alguma razão, decide dirigir seus próprios filmes. A experiência em sets no decorrer de um quarto de século, diante das câmeras, deu a Raúl Arévalo alguma fundamentação teórica e, claro, o deixou a par dos tantos cacoetes do mandachuva de uma produção cinematográfica. O roteiro de “The Fury of a Patient Man” (2016) permaneceu encerrado numa gaveta por cerca de dez anos, até que Arévalo se convencesse de que era de fato a hora de dar a cara a tapa. Desenvolvido a quatro mãos, com o também estreante David Pulido, o enredo do filme prima pela autenticidade, artigo que vem se tornando raro, mesmo em filmes a distâncias continentais de Hollywood. Por bem mais de uma vez, o cinema espanhol (ou com tramas voltadas à cultura daquele país), particularmente, se tem prestado ao papel de macaquear produções realizadas nos Estados Unidos, desprezando a interessante fauna humana de que dispõe, sem falar no elenco altamente capacitado e nas locações de tirar o fôlego. Como exemplos desse erro, digamos, estratégico, se poderiam citar “Nuestros Amantes” (2016), dirigido por Miguel Ángel Lamata, que narra o envolvimento amoroso de um homem e uma mulher como incontáveis vezes já apresentado pelo cinema, e “Silenciadas” (2020), de Pablo Agüero, sobre a perseguição a mulheres tidas como feiticeiras quando da Inquisição católica na Espanha, entre os séculos 12 e 15.

Embora “The Fury of a Patient Man” não se proponha a implodir as estruturas do que se tem construído no cinema até então, Raúl Arévalo é um sujeito obstinado, e é a partir dessa sua cisma que consegue aportar exatamente onde deve. Apreende-se de seu trabalho que desde os primeiros tratamentos do roteiro o diretor aspira a deixar sua marca. Vaidade ou ousadia artística? Abusando de planos fechados em que nenhuma microexpressão dos personagens se perde, Arévalo divide seu talento, com toda a justiça, com o corpo de atores que tem à mão. Ainda nas primeiras sequências, quando do roubo à joalheria — isca certeira quanto a fisgar de vez o espectador quanto a saber de que modo a história vai se desdobrar —, momento mais acelerado da trama, já se percebe algum frescor na maneira escolhida para se filmar. A decisão certamente se provaria um rematado desastre caso não se dispusesse de atores do gabarito de Antonio de la Torre e Luis Callejo, que mantém o filme lá no alto até o desfecho. Mais uma vez: Arévalo ainda tem de comer muita paella, mas ao se rodear das pessoas exatas para seus projetos, deixa claro que não está para brincadeira. Malgrado sua inexperiência, resta claro que tem pleno controle de seu ofício, ao mostrar que é capaz de virar a narrativa para onde quer, no momento que julga oportuno. O emprego de luzes e sombras, artifício técnico que demanda sutileza ao extremo, aliado ao uso dos tons frios e terrosos na fotografia, aludem de imediato à dureza do propósito do misantropo José, vivido por De la Torre, cuja namorada, funcionária da joalheria, fora brutalmente espancada e morta no assalto. Obcecado com a ideia de se vingar, para que seu intento tenha alguma chance de sucesso — uma vez que é um completo neófito nesse submundo —, se vale de suas armas mais letais: a sutileza, uma frieza que aponta para uma possível incompreensão por parte dos outros e seu ar meio gauche, meio perdido, exatamente o que Ana, de Ruth Díaz, a dona do botequim que José passa a frequentar, considera atraente num homem. A mulher de Curro, papel de Callejo, se mantém no relacionamento com ele por comodismo, mas também por medo. Curro fora um dos bandidos que tomaram parte no latrocínio na joalheria e, apesar de não ter matado a companheira de José, sabe onde o assassino pode ser encontrado. É por meio desse arco dramático que se desenrola o improvável vínculo entre os dois homens, cada qual com seus fantasmas, suas hesitações, seus temores.

Nesse ponto específico do argumento, é interessante destacar a relação entre figuras masculinas funestas, rechaçadas pelo estabelecido por uma ou outra razão, e que se veem forçadas a conviver por uma circunstância muito peculiar. Certamente, o arquétipo mais exitoso quanto ao tema é “Três Homens em Conflito” (1966), do italiano Sergio Leone (1929-1989), estrelado por Clint Eastwood, Lee Van Cleef (1925-1989) e Eli Wallach (1915-2014). No filme de Leone, Lourinho, Tuco, e Angel Eyes têm apenas um ao outro a fim de descobrir o paradeiro do tesouro que buscam, e não podem nem pensar em resolver o imbróglio a bala, já que cada um deles está munido somente de fragmentos de pistas, isto é, se não se unirem ao menos nesse momento determinado, podem ficar sem nada e, pior, na ponta de uma corda. Em “The Fury of a Patient Man”, se dá o mesmo com José e Curro; concluída a saga, cada um ganha sua recompensa. E nunca mais se veem de novo.

No imenso vazio existencial do José de De la Torre não cabem todas as suas muitas mágoas, que extravasam e se deixam perceber por seu olhar, sempre fixo, e por suas reações quase nunca espontâneas — até que explode na fúria a que o título faz referência no instante em que se põe cara a cara com o homem que trucidou sua mulher. Mesmo aí, há que se prestar toda a atenção à sua linguagem não-verbal, a chave para se alcançar o espírito do personagem. Callejo, por seu turno, elabora um ponto de harmonia preciso ao tipo de seu antagonista. É impossível saber antecipadamente como vai se comportar frente à próxima reviravolta do filme, o que confere a seu trabalho e à história em si a verossimilhança de que falávamos no princípio.

Como filme inaugural de um diretor, “The Fury of a Patient Man” é merecedor de todo o crédito. Aqui, Raúl Arévalo, um ator invulgar, se prova um realizador metódico, operoso, que não tem medo de trabalho, que sabe exatamente o que pode vir a ser. Talento requer muita paciência — e a dose certa de fúria.