Cinema dos anos 1970 viu o retorno do nazifascismo

Cinema dos anos 1970 viu o retorno do nazifascismo

A partir de um certo momento dos anos 1970, cineastas de diversos lugares começaram a sentir o cheiro de queimado no ar. Era como se pressentissem o que estava por vir depois das revoltas de 1968, quando o mundo veio abaixo. Havia um clima de reação, porque os governos europeus jamais poderiam aceitar nova onda de protestos de jovens estudantes e de trabalhadores. A união desses dois grupos é fatal em qualquer época. Portanto, algo precisava de ser feito, pensaram os políticos.

Um conjunto de filmes capturou a atmosfera de repressão no período, sobretudo na Europa. E a forma escolhida pelos diretores e roteiristas foi a volta ao passado, um resgate do nazifascismo. Parecia que, do nada, as histórias nas telas traziam enredos da Segunda Guerra Mundial, política, encenação da violência, crise do capitalismo. Ficou claro que se chegava naqueles anos ao fim do Estado de Bem-Estar Social (welfare state), criado justamente para evitar o retorno dos instintos fascistas e nazistas.

O caso da Itália foi exemplar, em vista dos inúmeros filmes que encararam a volta da violência reprimida. Para entender o que se passava novamente no berço do fascismo, o filósofo Antonio Negri deu a interpretação mais cristalina e informativa. Segundo ele, houve a aliança surpreendente de comunistas e democratas cristãos, com a bênção de católicos abalados com as mudanças feitas pelo papa João XXIII. O acordo inusitado buscou o controle dos movimentos de operários e de estudantes. 

Anos de chumbo

Os militantes de extrema-esquerda haviam entrado, a partir dos anos 1960, nas fábricas e se misturado aos trabalhadores. Criou-se uma efervescência política que contaminou o restante da sociedade, sugerindo novas formas de organização nas empresas e sindicatos. Foi a época dos famosos “autonomistas”. A “santa aliança” (partido comunista e igreja) decidiu que a paz só viria com o isolamento e o combate aos extremistas. Para isso, os neofascistas ofereceram seus serviços de milícia armada. 

O terrorismo da direita soltou a isca para extrema-esquerda que reagiu com a criação das Brigadas Vermelhas. Foram os “anos de chumbo” na Itália, das tentativas de golpe de Estado e de atentados à bomba. A direita explodiu a estação de trem da cidade de Bolonha, e a esquerda revidou com o sequestro e morte do primeiro-ministro Aldo Moro — uma ação ousada demais que levou à perseguição cega contra os esquerdistas. Começou uma fase de assassinatos, perseguições e delações para prender comunistas.

“O Partido Comunista ensinou à Democracia Cristã o que era um processo stalinista, ou seja, a condenação absoluta, a eliminação, o esmagamento”, conta Antonio Negri, que foi preso na caça às bruxas. Um dos alvos dos novos fascistas foi o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, literalmente linchado e morto em 1975, num crime dos mais estranhos do período. Com esse pano de fundo, o cinema europeu voltou os olhos para o fascismo e apontou que algo de muito errado estava em andamento.

Ovos das serpentes

Bernardo Bertolucci foi um dos primeiros a perceber a situação sufocante descrita por Negri. Em 1970, ele filmou “A Estratégia da Aranha”, no qual um jovem que busca entender o assassinato do pai por ordem de Benito Mussolini, o líder fascista. Um ano depois, voltou ao tema com o clássico “O Conformista”. O personagem central adere ao fascismo e recebe missão de matar um antigo professor seu. Não se tratava de fazer apenas uma narrativa histórica, mas sim de colocar o foco no presente italiano.  

Novecento (1976), Bernardo Bertolucci
Novecento (1976), de Bernardo Bertolucci

O ápice desse movimento de Bertolucci foi, sem dúvida, o filme “Novecento” (1976), que narra o surgimento da base do comunismo italiano. São camponeses de uma fazenda na região da Emília-Romanha, representados pela figura de Olmo (interpretado por Gerard Depardieu). Ele mantém uma amizade com Alfredo (Robert de Niro), filho do proprietário do local. Entre eles, surgem os voluntários do fascismo, como o capataz da fazenda Attila (feito por Donald Sutherland).

Fica evidente a intenção dos cineastas de exagerar na representação da violência fascista. O Attila de Bertolucci é absurdamente cruel, perdendo em termos de sadismo apenas para os personagens do filme “Salò ou os 120 dias de Sodoma” (1975), de Pasolini. Esta obra chocou meio mundo ao transpor as histórias do Marquês de Sade (a fonte para a palavra “sadismo” como sinônimo de crueldade) para a cidade italiana que acolheu a fase final do governo fascista — a República de Salò (1943-1945).

No filme de Pasolini, quatro libertinos e fascistas submetem um grupo de 18 jovens a uma série de perversidades. Jamais o cinema conseguiu mostrar tamanha brutalidade, violências sexuais e torturas. O moralista retratado por Pasolini é o perverso em estado puro que compõe o poder fascista de Mussolini — e renascido na década de 1970 por meio da “santa aliança” que perseguiu comunistas. A mensagem é clara: quem prega a moral e os bons costumes são, geralmente, os cultuadores da perversão.

Dois outros filmes italianos exploraram bem o imaginário do fascismo. “Amacord” (1973), de Federico Fellini, trouxe o teatro das encenações políticas como os desfiles militares nas ruas, os personagens grotescos das memórias do narrador Titta. O “eu me recordo” do título significa também um “não esqueci que os fascistas estão por aí”. O cineasta das imagens lúdicas, dos sonhos, dos palhaços, soube como ninguém captar o espírito dos anos de chumbo e o retorno do fantasma do fascismo.

Já “Um Dia Muito Especial” (1977), de Ettore Scola, conta a história de uma mulher (Sophia Loren) que fica em casa enquanto o marido e os filhos vão à manifestação de Mussolini para receber Hitler, em 1938. O cenário é o apartamento dela em Roma, tendo sons distantes das músicas e dos gritos da multidão no evento. Ela é a mulher que não cede aos encantos da irracionalidade e acaba passando o dia com o vizinho, um radialista gay interpretado por Marcello Mastroianni.

Fantasmas

Na década de 1970, o Novo Cinema Alemão fez um acerto de contas com o passado vergonhoso do nazismo. Mas é interessante notar que os cineastas não recorreram muito a recriações históricas. O fantasma nazista estava no presente. Em “O Medo Devora a Alma” (1974), Rainer Fassbinder traz a mulher branca que se apaixona por um imigrante negro 20 anos mais jovem. O conflito social explode no namoro deles. Ela é a descendente de família nazista, e os filhos dela são a síntese do reacionarismo da época.

O Tambor (1979), Volker Schlöndorff
O Tambor (1979), de Volker Schlöndorff

Em “O Tambor” (1979), Volker Schlöndorff se baseou no premiado romance do escritor Günther Grass. A história é a de uma criança de três anos de idade que deixa de crescer e passa a tocar um tambor de lata, um dos símbolos para convocação das massas populares ao nazismo. O filme transformou em cenas a trama horripilante e grotesca de Grass, sempre calcada nas mitologias populares da Alemanha, principalmente a figura do anão que é fortíssima na cultura alemã.

A Alemanha nazista é o cenário para o filme “O Ovo da Serpente” (1977), do diretor sueco Ingmar Bergman. O filme é um desvio claro na obra de um cineasta que explorou à exaustão as questões da subjetividade e da incomunicabilidade no mundo contemporâneo. Contra seu movimento anterior, Bergman decidiu contar a história de um americano perdido em Berlim que descobre estar sendo perseguido por ser judeus. Há uma busca de reconstituição histórica do período nazista.

Vindo da geração da Nouvelle Vague, o francês Louis Malle abriu a ferida do seu país que se rendeu aos alemães na Segunda Guerra. É um dos episódios mais vexaminosos e que ficou conhecido como a França de Vichy. O filme “Lacombe Lucien” (1974) mostra um jovem que delata um professor para os nazistas e acaba se tornando ele mesmo um agente policial. O problema surge quando o rapaz se apaixona por uma jovem judia, criando o drama da delação. No fundo, trata-se da traição ao próprio país.