Pensei que tinha voltado a chover, mas estava apenas chorando

Pensei que tinha voltado a chover, mas estava apenas chorando

Fazia um calor de tirar pica-pau do oco. Pensei que seria uma boa ideia botar uma tanga, pegar o carango, tocar para o interior e tomar banho de rio. O intento era permanecer imerso por horas a fio no friozinho refrescante das límpidas águas de um ribeirão, embaixo da copa dalguma árvore frondosa da mata ciliar. O meu sonho de consumo, portanto, parecia singelo e barato. Não era pedir muito, certo?

Escolhi um lugar que frequentava quando criança. A sintonia com a natureza e o retorno aos primórdios pareciam motivos absolutamente tentadores. O preço da gasolina, que já tinha atingido ultrajantes sete reais por litro, deixou-me desacorçoado, mesmo assim, mantinha-me convicto de que aquele passeio bucólico iluminaria a minha memória afetiva e seria deveras proveitoso para a minha saúde físico-mental. Nada — nem a inflação de dois dígitos, nem o dólar nas alturas, nem os seiscentos mil mortos pela Covid-19, nem o clã bolsonarista — afetaria o meu humor de maneira significativamente negativa.

Sentia-me um calango num spa. Após uma hora dirigindo sob o clima de deserto, cheguei ao meu destino. Escolhi uma sunga floral, que era para combinar com a natureza viva, embora, um tanto esturricada pelas queimadas criminosas que judiavam do cerrado no mês de setembro. Obviamente, eu corria o perigo de ser confundido com uma roseira e tomar picada de marimbondo nas partes. O prazer do mergulho compensava o risco.

O ar parecia morto como o ex-ministro Nelson Teich. Estacionei o possante na sombra de uma árvore cujas folhas murchavam sob a estufa do clima árido. Dei uma última conferida no painel: 41 graus Celsius. Enfiei a mochila no sovaco e segui pela trilha que me levaria direto ao riozinho. Enquanto caminhava, rememorei alguns poucos instantes peculiares de uma vida vivida na roça durante a meninice. De fato, tomar banho pelado com os outros moleques e não aderir ao famigerado troca-troca tinha sido uma decisão acertadíssima da minha parte, à época. Sabia-se lá se se tomava gosto na coisa. Não que isso fosse um comportamento recriminável para um homem adulto. Nada disso. Ocorre que hoje sofro das hemorroidas e tenho bastante dinheiro guardado no banco. Não devia ter-lhes contado tais coisas, mas, não poderia perder a piada.

Desci pela encosta e suava às bicas. A expectativa era tamanha que já podia pressentir o cheiro das caudalosas e refrescantes águas do rio na atmosfera. Um guri descalço, sem camisa, barrigudinho, passou correndo por mim em sentido contrário. Tinha cara de espanto e o rostinho também suado. Não demorou muito tempo, outro moleque, que devia contar uns sete anos, cruzou por mim, em disparada, morro acima, com um sorrisão vívido estampado no rosto: “Peixe! Peixe! Peixe!”, gritava. Que graça. Pensei que alguém devia ter pego um dos grandes. Aquilo me encheu de esperança. Dia de sorte, com certeza.

Alegria de virginiano dura pouco. Pisei em bosta de vaca, xinguei as criaturas inocentes e limpei o pé numa touceira de capim seco. Na verdade, o incidente não consistia num grave problema. Lavaria o tênis quando chegasse ao córrego. Percebi que o pasto estava coalhado de zebuínos magérrimos. A estiagem não estava sendo fácil para ninguém que não fosse poeira. Estava a poucos passos do paraíso. Pensei ter escutado o ruído da correnteza lambendo as rochas. Dava para ouvir os rumores de gente conversando. Pareciam animados. Mal podia esperar para me despir e dar um tibum na água fresquinha daquele regato onde um dia pesquei piaus e nadei com outras crianças.

A não ser a própria vida, eu não carregava nada de valor comigo. Esqueci, de propósito, o telefone celular dentro do carro. Relógio de pulso fazia anos que eu não usava. Aleluia! Não pegava sinal de internet na região. Tudo perfeito para a mais completa desconexão com o caos de uma metrópole repleta de dicotomias econômicas e sociais.

Antes que eu chegasse até a margem, um sujeito passou em tresloucada correria, ladeira abaixo, segurando uma coisa nas mãos que parecia ser uma tarrafa. Me perguntei se ainda continuava proibido usar aquele tipo de artefato para pescar. E daí? Não era da minha conta. Quem é que ia multar um matuto num confim como aquele? Continuei a minha animada descida, ávido por um mergulho e por tomar Cuspe gelado na sombra lacrimosa da gameleira centenária.

O volume das vozes foi ficando cada vez mais alto, mas, nem sinal da árvore frondosa cujos galhos eu escalava para dar mortais no riacho. Diacho! Deparei com uma cena impensável que me arrasou profundamente, logo na chegada. Havia cascalho e cocurutos de pedras por todos os lados. Por causa da seca prolongada e da ganância humana, o rio tinha parado completamente de fluir. Já não corria para o mar.

Me deu vontade de sair correndo. Remanesciam alguns poucos poços aqui e acolá. Depois de saciar a sede com a água barrenta, o gado fazia o fluxo em contrário, em fila, seguindo triste, faminto e cabisbaixo de volta ao pasto seco, sem viço e sem atrativos. Pelo jeito, somente as pedras não tinham sido afetadas pelo calor colossal e pela falta de chuvas que já perdurava três meses.

A poesia quase sempre me acode. Lembrei-me do Drummond. Tinha um caminho no meio das pedras. Soltei os pertences sobre a lama. Os guris que tinham cruzado por mim reapareceram serelepes, trazendo baldes, cestos e sacolas que foram distribuídas entre todos. Deviam ter umas dez pessoas ali. Estavam entusiasmados, entretidos ao lado de um poço no qual um cardume agonizava e se debatia com a falta de oxigênio. As lapadas dos bichinhos na água comoveram-me e agitaram ainda mais os ânimos daquela gente simples.

Perguntei para o homem mais velho, que parecia ser o líder da trupe, aonde é que soltariam os peixes. Sem sequer olhar para mim — ele sabia que eu era um alienígena dentro daquele contexto rural — o camponês franziu a testa, sorriu e atirou a tarrafa sobre o cardume exausto. Enquanto arrastava a rede, ele comentou que aquele era um dia abençoado e de muita sorte para a comunidade ribeirinha. Finalmente, teriam o que comer nos próximos dias.

Um a um, os peixes foram retirados das malhas e jogados sobre o barro onde moleques armados com porretes davam neles golpes de misericórdia. A única mulher presente enfileirava o pescado de acordo com o tamanho, para serem justa e igualitariamente divididos entre todos os envolvidos naquela aventura.

Nunca tinha visto um peixe morrendo afogado. Afastei-me do grupo. Desabei sobre o barranco, combalido, acabrunhado e ofegante. Tinha esquecido a bombinha em casa. Pobre asmático, chorei a plenos pulmões, feito o menino que um dia eu fui e que nadou naquele ribeirão de águas secas e tristonhas.