O melhor documentário de 2021 está no catálogo da Netflix

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A sorte decerto foi uma faca de dois gumes na trajetória de Michael Schumacher.  Schumacher começou a provar ao mundo — que ainda não o conhecia —, que tinha estrela já em 1991, ano em que debutou na Fórmula 1, a principal categoria do automobilismo mundial. Bertrand Gachot, contratado da Jordan, encrencado com a justiça por causa de uma briga de trânsito, foi impedido de defender a escuderia. Era a grande chance para o piloto, nascido em Hürth, cidadezinha do centro-oeste alemão, anônimo, provinciano, mas desde sempre obstinado e ambicioso.

Habituado a recolher do lixo os pneus que usava em suas performances amadoras, ainda no kart, Schumi, o filho mais velho de Rolf, zelador do kartódromo, agarrou a oportunidade com unhas e dentes. A partir de então, tinha início uma das escaladas mais bem-sucedidas de um atleta ao longo da história, dentro e fora do esporte. O piloto é a própria encarnação do surrado clichê da lenda viva, por todas as razões possíveis, conforme evidencia o documentário “Schumacher” (2021), dirigido pelos alemães Hanns-Bruno Kammerstöns, Michael Wech e Vanessa Nöcker, disponível no acervo da Netflix. Um épico contemporâneo sobre um herói controverso.

Dotado de uma inteligência acima da média e muito mais intuitivo que técnico, Schumacher era a perspicácia em pessoa. Ele entendia muito bem o mecanismo da Fórmula 1, até porque era uma das engrenagens sem as quais a roda das corridas com carros adaptados não saía do lugar. Ainda que não fosse exatamente um admirador da imprensa — muito menos do que a atividade jornalística significava em sua vida: exposição fora de controle, holofotes, perseguição —, no decorrer da carreira fora se policiando para não deixar nenhum repórter sem sua tão buscada sonora. Embora profissional até o osso, não se furtava a uma ou outra provocação, a uma ou muitas grosserias, mas se mantinha impávido — e o sangue frio característico de sua personalidade contribuiu muito para que chegasse tão longe.

Schumacher conseguia se manter a salvo de paparazzi e que tais na vida pessoal, o que evidentemente aumentava o mistério em torno de sua intimidade, aumentava o interesse. A mulher, Corinna, era presença constante entre mecânicos e jornalistas nos padoques e às vezes mesmo nos pitlanes, mas deixava Michael, o verdadeiro astro ali, brilhar — e nunca houve problema algum entre os dois por isso. Grande parte do público nunca soube de particularidades de Schumacher, casado com Corinna desde 1995, e seu tato em lidar com seu lado humano (ou o que restava dele), paradoxalmente, também se tornava notícia.

Schumi reconhecia a grandeza de colegas como o brasileiro Ayrton Senna da Silva (1960-1994), 9 anos mais velho e fonte de inspiração. Schumacher e Senna eram rivais como raramente se veem hoje, titãs nas pistas, genuínos cavalheiros fora delas — ainda que certas ocasiões sugerissem uma troca de sopapos prestes a irromper, como no episódio em que Senna fora tomar satisfações com aquele molecote de 23 anos que, atrevido e inconsequente, achava que podia literalmente atropelar todo mundo que se impusesse em caminho rumo a mais uma vitória. O brasileiro não gostara nada de ter sua McLaren tirada da disputa pelo alemão no Grande Prêmio da França de 1992 logo na primeira volta, o que redundou na desclassificação dos dois. Visivelmente furioso, mas contido, Senna lhe jogava na cara o que havia feito, uma conversa de profissional para profissional, como o veterano sempre vira o novato, em que não havia espaço para um terceiro interlocutor — e, por esse motivo, Senna expulsara um repórter intrometido que se infiltrara ali, dando um safanão no microfone que este lhe enfiava na cara. Schumacher parece não ter entendido a mensagem muito bem, ou pode tê-la entendido seletivamente, só no que dizia respeito a Senna. No GP da Europa, em 1997, Schumacher fez pior: batera contra o carro de Jacques Villeneuve e jurou que tinha sido o canadense que o atacara. Só depois de assistir a uma fita com o registro da colisão é que se convencera do que, de fato, havia acontecido.

Apesar de ter apresentado desempenho irrepreensível — Schumacher deteve 68 pole positions no decorrer de sua trajetória, subiu ao pódio ao final de 155 corridas, 91 vezes ao lugar mais alto, acumulou 1.566 pontos, e foi declarado campeão mundial da categoria em sete anos (1994, 1995, 2000, 2001, 2002, 2003 e 2004) nos 308 GPs que disputou —, depoimentos de personagens intrinsecamente ligados à Fórmula 1, casos do também ex-piloto londrino Damon Hill e do empresário Bernie Ecclestone, mandachuva da Fórmula 1 até 2017, se tornam menos interessantes se confrontados com as memórias de Corinna, e ao enfatizar a atual condição do ex-piloto é que “Schumacher” cresce. Michael Schumacher deixou o automobilismo em 2012 e, um ano depois, sofreu um acidente que o deixou hemiplégico durante um passeio de esqui em Meribel, nos Alpes franceses; até hoje, o ex-atleta se submete a tratamento para reversão das sequelas. Sem conseguir segurar as lágrimas, a mulher de Schumacher faz questão de esclarecer que o marido está bem, embora completamente alheio ao cotidiano da família — e sem poder se inteirar de detalhes da carreira do filho, Mick, na Fórmula 1 desde 28 de março de 2021.

Como numa genuína tragédia grega, Tique, a deusa da fortuna, deu a Schumacher tudo com que alguém poderia sonhar, mas cobrou um preço alto demais. Relendo-se a máxima latina, pode-se dizer de Michael Schumacher que os deuses enfraquecem os que rivalizam com eles.