A peste é o medo

A peste é o medo

Renasci numa noite de dor. Choviam canivetes, mas, quase ninguém se cortou. Ando muito em apuros, doutor. Os pensamentos em círculo. Não supunha que a carne do corpo também doía por consequência da saudade. Imbricada em tocar a vida em frente, como um vagão a descarrilar dos dedos de Deus, eu já não sei separar o que seja real do que seja imaginário. Penso, vinte e quatro horas por dia. Até mesmo quando estou dormindo, eu penso. Eu só sonho acordada, o senhor me acredite. Tudo ficou ínfimo. A minha vida não daria um livro. No máximo, um panfleto de papel impresso na frente e no verso. A adversidade transformou a poesia em letra morta. Em tempo: num feio dia, dei de cara com a morte e um filme se passou dentro da minha cabeça. Não era tão bom quanto eu imaginava. Mesmo assim, eu me apegava às migalhas do que tinha sobrado até aquela altura dos acontecimentos. Se pudesse voar, eu voava. Se pudesse derreter sob o sol, eu derretia a caminhar pela estrada, a sumir numa curva, a virar uma massa disforme — banquete para gaviões —, a desaparecer do mapa, como se eu fosse o derradeiro espécime de uma espécie em extinção. Há uma espécie de zonzeira turvando-me as horas. Já imaginou ser devorado por outro animal, doutor? As ideias me comem pelas beiradas. Sinto que o calor, as palavras e o vazio nunca foram tão causticantes. Eu sei que os parâmetros mudam. Tudo é relativo, até a folha de uma palmeira que balança sob a orquestra do vento vacilante. Se eu contasse, o senhor acreditava: o maior sabotador de um ser humano é o medo. E se. E se. E se. E se. São tantas as possibilidades de as coisas darem certo. Mesmo assim, a gente se apega no que pode suceder de errado. Temos uma fixação inaudita pelo fracasso. Será que acontece só comigo? Com o senhor também é assim? Já perdeu muitos pacientes ao procurar numa gaveta que horas eram, doutor? Muito já se perdeu sob as insígnias da insegurança. Um encontro. Um romance. Chopes no dancing. Crianças a cavoucar o jardim. Uma casa sem muros, edificada à beira de um lago que nunca vai secar. A felicidade tocando o terror no coração dos homens sem paixão. Deve ser terrível pensar apenas em patrimônio e dinheiro. Nunca apliquei nada na bolsa, só nas veias. Virei piolho de hospital, o senhor me desculpe a brincadeira. Remédios para remediar. Excitantes para voltar a sentir. Não se pode confiar numa pessoa que desaba a chorar só porque voltou a chover. Eu ando assim: seca, chorona e, acima de tudo, triste como uma floresta queimando. Uma companhia inconveniente até mesmo para uma mulher que mora sozinha. Como é que eu ia imaginar uma situação como aquela, que a peste levaria embora o meu filho estudante? A morte é um trem que sempre chega na estação. A gente jamais espera. Mas, uma hora, ele chega. Apitando. Palpitando o coração dos vivos. Avivando o medo, sempre ele, escondido no oco escuro da gente. Muitas vezes, fatidicamente, antes do tempo programado pelas obras do acaso. Sim. 25 anos. Flor da idade e coisa e tal. Pílulas. O senhor, por obséquio, me receite pílulas, doutor.