Tem mais miseráveis morando em mansões do que nas ruas

Tem mais miseráveis morando em mansões do que nas ruas

Acho que o Serginho Vassoura virou morador de rua. Vou tentar contar essa história de uma maneira que não pareça tão pedante e estereotipada. Morávamos no distrito sul da cidade. O apelido de Vassoura grudou nele que nem catarro, obviamente, por motivos anatômicos. Serginho era um garoto branco, alto e esguio. Possuía uma vasta cabeleira loira, com fios dourados e brilhantes que mais pareciam uma espiga de milho-verde. Fazia o tipo zen-surfista, com madeixas que lhe desciam entre as escápulas e garantiam retumbante sucesso entre as meninas — e 15% dos meninos também — do bairro. Isso acabava gerando uma certa inveja na gente. Tínhamos uma feiura inata difícil de ser controlada.

Apesar da pinta de descolado, da notória beleza e do tsunami de testosterona que lhe arregaçava as veias, o Sérgio não parecia nem um pouco interessado em namorar. Também não aparecia mais para jogar bola conosco. Tinha adquirido um comportamento arredio e, quase sempre, carregava um sorriso paralítico no rosto que lhe proporcionava um ar patético, abestalhado, aéreo, como se estivesse constantemente ligado noutra sintonia que não a nossa.

A rapaziada do futebol dizia que Vassoura tinha surtado, que estava ouvindo muito rock psicodélico, que tinha descambado para o cenário underground e andava metido com maconha, chás e cogumelos alucinógenos. Isso explicava, em parte, aquela sua fixação por passeios bucólicos pela roça, onde se aplicava na coleta de fungos que cresciam em bosta de vaca. Como diria o poeta — e os locutores de rádio também — o tempo não para. Tanto não para que, tungados pela obviedade do tempo a passar, acabaram-se as peladinhas de rua, a turma cresceu e cada qual seguiu o seu caminho. Nunca mais tive notícias do enigmático Serginho Vassoura e das suas viagens na maionese.

Não sei quanto a vocês, mas, aqui onde eu moro aumentou pra cacete o contingente de gente a vender badulaques, a esmolar e a performar em troca de moedas nos semáforos da cidade. Nas portas das igrejas, eu não saberia. Não frequento esse tipo de ambiente. Anda perigoso à beça. Crentes armados com trabucos, com lorotas reacionárias e com as palavras que Deus, supostamente, teria ditado nos ouvidos de algum fanático religioso há milênios.

Sinal vermelho. Parei o possante. O óleo do cárter pingou sobre o asfalto quente. A chapa estava quente. Começava mais um show de horrores sobre a faixa dos pedestres. Um cara tocava violino. Putas feias distribuíram panfletos com aroma artificial de buceta. Um poeta declamava versos terrivelmente medíocres da sua larva literária. Um professor universitário, caracterizado como Fred Mercury, requebrava sem camisa, a balançar o holerite para o alto em sinal de desespero. Uma venezuelana de 14 anos, cujo neném lhe sugava uma das tetas, vendia crack em embalagens de paçoquinha. Dois homens se beijavam e só não levaram tiro porque estava todo mundo, como sempre, atrasado e sentado atrás do volante. Bailarinas pediam apoio financeiro para dançar balé na corda bamba. Um paramédico com dons paranormais aterrissou de parapente sobre a avenida e demonstrou por A + B como se fazia uma ressuscitação cardiorrespiratória num bolsonarista sem coração. Um cientista carregava um cartaz sobre a cabeça com os dizeres “O cérebro é redondo”. Um doidivanas gritou que Elvis estava voltando. Uma grávida pariu de cócoras sobre o asfalto quente. Um cara estourou os miolos, mas, ninguém deu a mínima.

Notei que um sujeito maltrapilho zanzava entre os automóveis. Parecia mais fodido do que o normal. Cambaleava entre os veículos, fazendo caretas e esfregando o polegar contra o dedo indicador. O motorista do Porsche ao lado abaixou o vidro e, sem que eu lhe perguntasse — não gosto de caras exageradamente ricos — comentou que, se dependesse dele, metia logo uma bala na cabeça daquele verme. Com a recente restrição ao uso de neurônios, o governo federal não apenas tinha liberado o verbo como também o porte de armas pelos cidadãos de bem. Estava aberta a temporada de caça aos índios, aos pobres e aos comunistas.

O maltrapilho parecia familiar e vinha na minha direção. Abri a janela do carro. O cara da Porsche disse você é doido, veado. Menos de cinco metros e eu já sentia o cheiro da mendicância. Apesar da sujeira, deu para notar que era um homem branquelo, alto e caquético. Trazia um sorriso sonso no rosto e um insuspeito ar de lunático. Faltavam-lhe dentes e amor-próprio. Era calvo da testa até metade da cabeça. Do meio dela até a nuca, carregava uma cabeleira suja, malcuidada, que mais parecia um ninho de ratos com nuanças de fuligem, de poeira e de indiferença.

— Serginho?

— Ahn…

— Você é o Serginho Vassoura, não é?

— Tem moeda aí, irmão?

— Serginho, você sumiu. O que foi que aconteceu? Por onde você andava? Pensei que você tivesse morrido.

— Eu já morri, cara. Eu já morri. Me arruma uma grana.

O sinal verde acendeu. Os carros aceleraram. Serginho saiu correndo de forma atabalhoada pela frente do meu carro. Parecia um gato sujo em fuga. Acabou atropelado pelo carinha do Porsche que fugiu sem prestar socorro. Era a segunda vez que uma personagem tinha morrido duas vezes dentro de uma mesma história baseada em fatos reais.