O melhor filme de zumbi da década está no catálogo da Netflix Divulgação / Netflix

O melhor filme de zumbi da década está no catálogo da Netflix

O desejo no homem é uma constante desde o começo dos tempos. A aspiração por um mundo melhor, por exemplo, povoa o imaginário da humanidade a ponto de inspirar narrativas sagradas, como a destruição e refundação das cidades de Sodoma e Gomorra, tomadas pelo pecado, apodrecidas pelo que poderia haver de mais nefando na natureza humana, o mal institucionalizado. Nem o Todo-poderoso suportou. Mas onde foi que nossas boas intenções começaram a dar tão errado?

Desde sempre, afinal nunca fomos bonzinhos. Logo, tratamos de encontrar um jeito de subverter a filosofia limpinha do “novo mundo possível”. O argumento da sociedade igualitária, democrática, justa, evoluída, em que todos teríamos as mesmas obrigações e os mesmos direitos, rapidamente mostrou se originar de uma premissa corrompida já no ovo. Viver num mundo em que todos teriam de fato igual valor não queria dizer lutar para implementar leis — do ponto de vista jurídico ou ainda que restrito aos costumes — que se esmerassem em garantir tais condições a qualquer um, mas à extinção de todo regramento. O apocalipse.

A fantasia com criaturas sobrenaturais que deixam seus túmulos quando ninguém vê e zanzam pelas cidades como se ainda estivessem vivas orbita a literatura fantástica desde pelo menos a Idade Média, quando também se popularizaram relatos sobre bruxas e vampiros — bruxas existiram mesmo e acabaram queimadas nas fogueiras da Inquisição (que perdurou do século 13 ao 19, se admitidas as duas fases do fenômeno, medieval e moderna) e as tramas de vampiros têm alguma fidedignidade histórica, em grande medida, graças à sombria figura do conde romeno Vladímir Drákul. Quanto aos zumbis, há alguma controvérsia. Há quem diga que rituais de magia negra praticados em países da América Central, como o Haiti, por exemplo, seriam capazes de fazer os mortos voltarem à vida, e sempre vem a lume uma tentativa de se justificar o atraso social e a miséria econômica daquele país à carga demoníaca que tal cultura desencadearia. O estranhamento quanto ao outro, ao diferente, o medo que situações e povos desconhecidos provocam na civilização estabelecida — conforme se verifica com o Haiti e tantos outros —, é o mote de filmes que abordam cenários extremos, como o fim do mundo, e em que medida se poderia dar a vida numa Terra devastada, sem pão, sem água, sem lei, sem perspectiva. O mundo já acabou para muita gente.

O cinema se apropriou da noção da adaptabilidade da vida num planeta sem vida sob as mais diversas naturezas. Em se tratando de indivíduos que resistem à morte ou voltam da morte — e certamente do inferno, afinal, no Céu só estão os que nunca se entregaram ao mal absoluto, ou até podem tê-lo feito, mas se redimiram, muitas vezes à custa de toda uma existência de privação e sofrimento, finda com, o fundamental, contrição sincera; ninguém seria capaz de trocar o Paraíso por uma macaqueação da vida, como se dá com os zumbis —, os redivivos como o sabemos hoje passaram a ter um gênero para chamar de seu a partir de “A Noite dos Mortos-Vivos” (1968), de George Romero, cujo enredo continua a servir de base para tudo o que veio depois: defuntos reassumem sua constituição humana ou por um acidente nuclear, ou por terem incorporado uma manifestação biológica que necessita da anatomia do homem para dar azo a seus propósitos, ou, por óbvio, cerimônias demoníacas. No começo, os cineastas que se dedicavam a essas narrativas não contavam com orçamentos multimilionários, isto é: em substituição a efeitos especiais dignos de Oscar, muito sangue cenográfico jorrando em toda parte, o que por sua vez, deu origem a um gênero dentro do gênero, o gore. Inexplicavelmente, essas produções arrebanharam público tão vasto — e fiel — que os estúdios do mainstream de Hollywood também entraram no jogo.

No caso de “Invasão Zumbi”, Hollywood passa longe. Lançado em 2016, o filme, dirigido por Yeon Sang-ho, é a cara de como o cinema sul-coreano tem se apresentado desde meados da década passada, com “O Hospedeiro” (2006), de Bong Joon-ho: filmes que prezam pela originalidade, pela excelência da técnica, sem prejuízo da bilheteria — pelo contrário. Aliás, é justo com Joon-ho que Sang-ho mais se assemelha em seu primeiro trabalho de fôlego.

O humanismo lato sensu brota da obra de Yeon Sang-ho. Em “Invasão Zumbi”, Seok Woo, um homem divorciado e com uma compulsão por trabalho, é convencido pela filha, que mora com ele, a levá-la para uma temporada com a mãe. Eles tomam um trem para Busan, mas a viagem, que deveria ser tranquila, acaba apresentando mais percalços do que imaginavam, devido à súbita ocupação dos mortos-vivos em toda parte, inclusive no trem, e é aí que aparece a rica sociologia do filme. Quem pode, leia-se, quem tem dinheiro, se isola dos demais, ainda que saiba que a desdita se reserva também para eles; enquanto isso, na classe econômica, se desesperam casais esperando filhos, duas senhoras idosas, talvez igualmente um casal, a tripulação e jogadores de um time de beisebol. Seok Woo só quer chegar ao seu destino e entregar a filha em segurança.

A mentalidade egoísta do personagem central — e que maneira vai encontrar a fim de vencê-la, para continuar vivo e, assim, manter a filha a salvo —, é o ponto alto do longa. Seok Woo se depara com muitas outras pessoas que só pensam em si mesmas, com a diferença de que aquelas são dotadas da boa condição financeira que as resguarda. Em meio ao caos que se instala — com planos-detalhe de choros, mãos crispadas, olhos arregalados, bocas secas —, o protagonista, a seu modo, repensa a vida que tivera até ali, sem que as sequências de ação sejam interrompidas, frise-se.

Histórias como a de “Invasão Zumbi” ressaltam a dicotomia a que o homem está exposto desde o momento em que se percebe agente munido de razão e sentimento e quando nota que uma coisa pode muito bem imiscuir-se a outra, producentemente. A cada um é dado o poder (e a faculdade) de aceitar que mudar é preciso e, destarte, se salvar. Não deveria ser necessário que monstros nos ensinassem.