Carlos Drummond de Andrade, a rosa que sobreviveu ao lodo do Brasil getulista, mas feneceu com uma tragédia íntima

Carlos Drummond de Andrade, a rosa que sobreviveu ao lodo do Brasil getulista, mas feneceu com uma tragédia íntima

Há 34 anos, murchava uma rosa. Rosas murcham todos os dias, rosas foram feitas para murchar, é da natureza mesma das rosas murcharem logo. Elas levam muito tempo para pegar na terra, se abrir em botão, florescer. Não faz sentido permitir que uma rosa permaneça no mesmo jardim toda a vida. Rosas têm de ser colhidas, a fim de que enfeitem outros lugares, transformem os vasos frios em que acabam em verdadeiras paisagens. Mas somente por um breve instante.

Em 1916, aos 14 anos, Carlos Drummond de Andrade deixou a Itabira do Mato Dentro no leste mineiro onde nascera e se ia criando, e fora se enfronhar na aventura da vida na capital que fervilhava. Sua permanência em Belo Horizonte, num colégio interno, sem nenhuma poesia, a fim de estudar, fora curta. Por motivo de doença, porque poetas têm a saúde um tanto frágil, o ainda menino Carlos volta para Itabira, sem descuidar dos estudos. Dois anos depois, em 1918, torna a botar a perna no mundo e ruma para outro internato, dessa vez em Nova Friburgo, no interior do Rio de Janeiro, cujo clima far-lhe-ia bem maior.

Itabira só passara a ser apenas um quadro na parede para Drummond — ainda que doesse — a partir de 1925, depois de formado em odontologia e farmácia em Belo Horizonte. Vivera a bordo dos trens uns bons pares de anos, entre Itabira e a capital, resistência só adquirida graças à sua alma de ferro, do ferro de Minas. O espírito mineiro já nasce velho, diria Fernando Sabino (1923-2004), e dessa velhice, e do ferro de que é fundamentalmente composto, se extrai a vasta sabedoria para se viver num mundo vasto, ainda que não se chame Raimundo. Em se tendo vasto o coração, tudo o mais se aquieta.

Drummond escrevia profissionalmente desde 1921, mas só em 1928 o poeta publica “No Meio do Caminho”. Repleto de assonâncias e repetições propositais, aquele caldeirão de novidades não fora bem digerido pela intelligentsia da época, que julgou um verdadeiro escândalo a “Revista de Antropofagia”, de São Paulo, perder tempo com um caipirão cafona e metido a besta que não tinha a menor ideia de como se deveria escrever poemas. A tacanheza era de tal ordem que embatucaram até com o “no meio do caminho tinha uma pedra”. O que diabos Drummond quisera dizer com aquela xaropada? E para que dizê-lo tantas e tantas vezes? O emprego do verbo “ter” em lugar de “haver” também se mostrava uma ousadia totalmente desnecessária, comprovando o juízo de valor que os padres do colégio interno lhe tinham feito: Drummond era realmente um insubordinado.

Uma das sete faces de Drummond se desvela a partir da década de 1930, quando ingressa no serviço público e se torna um homem sério, com direito a bigode e tudo, além dos óculos, que já usava. E ele foi longe. Em 1930, era assistente da Secretaria do Interior de Minas Gerais, responsável por fomentar o desenvolvimento do sertão do estado. Nesse ano, sai do prelo “Alguma Poesia”, enquanto vai galgando mineiramente, mas algo a contragosto, posições mais altas nas intrincadas escalas do poder em Minas Gerais, quando chega ao posto de chefe-de-gabinete do ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema (1900-1985), entre 1937 e 1945, anos de Estado Novo com tudo o que ele poderia ter de mais ultrapassado na figura do caudilho gaúcho Getúlio Vargas (1882-1954).

A vida de Drummond fora uma eterna travessia ao longo de uma corda bamba e tênue, em que fazia de tudo a fim de se equilibrar entre os papéis de funcionário público, artista e pai de família, tentando não despencar no abismo da vaidade, da mediocridade, da melancolia. O expoente maior da Geração de 30 produzia cada vez mais e tomando mais cautela com questões estéticas, decerto traumatizado por causa das diatribes com que os críticos se investiram contra ele. Homem lhano, doce que era, Drummond respondia de maneira cordata, ainda que assertiva, por meio de suas composições. Ia produzindo uma obra que se pautava pela observação das necessidades filosóficas do gênero humano, da sensação de pertencimento a um mundo que nunca parava no mesmo lugar, que girava, girava, com velocidade sempre crescente. É nítido nos poemas drummondianos o sentido de que o homem se perde mais e mais de si mesmo, incapaz que é de compreender sua função na vida, na sociedade, no amor, temperado por doses homeopáticas de sua ironia tão típica, de seu niilismo até engraçado, mas cortante, de suas interferências políticas sutis, mas luminosas. Nas suas muitas vidas nada bestas, Drummond ainda tivera tempo de ser um destacado tradutor, vertendo para a inculta e bela a obra de Honoré de Balzac (1799-1850), Molière (1622-1673) e Federico Garcia Lorca (1898-1936).

Por trás de tanta introspecção, de tamanho humanismo, existia o homem. Drummond, por mais pessimismo que lhe banhasse a alma, encontrava o alento para suas tantas dores no convívio entre os seus. Sempre fora casado com Dolores, e não consta que tenha tido amores outros, paralelos, a lhe sacudir a monotonia saborosa da vida doméstica. Com ela, tivera dois filhos, Carlos Flávio e Maria Julieta. A história do Drummond pai é a grande pedra em seu caminho. Carlos Flávio fora como uma árvore frondosa, malgrado diminuta, que brota sabe Deus de onde e serve de breve repouso à já extenuante caminhada do poeta. Vida que parecia ter baixado às humanas misérias sem querer, Carlos Flávio morreu logo depois de vir ao mundo, por causa de uma malformação congênita no sistema respiratório. O episódio, por óbvio, calou fundo em Drummond, mas lhe incutira o gosto pela paternidade e lhe dera a certeza de que seria um excelente pai. Pouco menos de um ano depois, sua vida estava novamente completa com a chegada de Maria Julieta, em 4 de março de 1928.

Drummond e a filha foram ligados até a morte. Outra vez, em mais uma trapaça do fado, o poeta fora obrigado, aos 84 anos, a enterrar um filho. Maria Julieta combatera o quanto pôde o câncer que lhe ia minando a vontade de partilhar com o pai opiniões sobre livros, paixão em comum dos dois, mas morre, aos 59 anos, em 5 de agosto de 1987. Foi demais para o coração do poeta, que mesmo de ferro, explode num infarto que lhe destruíra uma parte considerável do aparelho circulatório, 12 dias depois do passamento de Maria Julieta. Drummond voltava, enfim, a ser rosa.