Sentimentos gerados pela visita a cemitérios

Sentimentos gerados pela visita a cemitérios

Por duas vezes, fiz algo aparentemente estranho: visitar cemitérios onde estão enterradas pessoas que admiro. Ainda bem que não estou sozinho nesse costume. Saiu agora no Brasil a coletânea de ensaios “Campo Santo”, do alemão W.G. Sebald, morto num acidente de carro em 2001. Ele relata na abertura do livro a ida ao cemitério da Ilha da Córsega, terra de Napoleão Bonaparte — nas próximas semanas, falarei mais sobre esse autor imperdível.

Minhas andanças foram pelo Père Lachaise, há 20 anos, e pelo Fluntern de Zurique em janeiro de 2014. A aventura suíça foi a mais surpreendente. As árvores próximas do hotel estavam todas secas, sem folhas, e cobertas pelo gelo da nevasca do dia anterior. Temperatura de um grau abaixo de zero não convidava ninguém a sair de um lugar com calefação. Só mesmo a curiosidade de ter estado tão perto e não ver pessoalmente o local que aparecia na internet. Cálculo: uma caminhada de mais ou menos um quilômetro dava para aguentar naquele frio.

Saí do hotel às 11 da manhã, na única janela livre de tempo que restou na viagem. Virei à esquerda e subi a ladeira do hotel que fica no ponto mais alto de Zurique. Entrei por caminhos de terra, na floresta de árvores secas. A primeira movimentação nas redondezas era de pessoas numa espécie de clube para jogar curling. Sim, esse esporte existe e não é invenção de canal de televisão a cabo que não tem o que exibir. Segui em frente pelas trilhas de terra, atrás de um casal de jovens italianos.

A seta a ser seguida era a do zoológico da cidade. Mais adiante, vi um monte de famílias descendo de VLTs para visitar os bichos. O frio piorou muito, e a neblina ficava mais densa, mostrando que estava na parte mais alta da cidade. Logo, avistei a sede da FIFA, com seus gramados e pista de atletismo. Uns corvos brigaram entre si no jardim cheio de neve, do lado de fora da “maison” do futebol.

A calçada tinha muito gelo e virei à direita na esquina da sede da FIFA. Devia estar no caminho certo. O local onde queria ir ficava antes do zoológico, conforme o google maps. O gps do celular funcionou bem no meio da floresta de árvores secas. Avistei um portão pequeno, fechado. Não poderia ser que o lugar esteja fechado. Ainda bem que estava aberto, mas nenhuma alma ou corpo por perto, só barulho dos corvos. Entrei e vi um painel um mapa, como tem no Père Lachaise de Paris.

O Fluntern tinha um mapinha! Ainda bem, porque havia muita neve. Subi mais uma ladeira no local. Quando finalmente cheguei, depois de uns trinta minutos de caminhada, veio a indescritível surpresa e susto. Elias Canetti e James Joyce estão enterrados lado a lado no cemitério. O irlandês tem uma estátua na sepultura, um jardim, e um pequeno ramalhete de flores amarelas, ainda bem vivas e resistindo ao frio de trincar. Outro admirador passou por ali dias antes A lápide do búlgaro tem o nome dele, com sua assinatura gravada no cimento. Bem simples e discreta.

Salvo engano, Canetti contou num dos seus belíssimos livros de memórias que encontrou ainda jovem o já conhecido Joyce. Dois expatriados em Zurique. Ou ele contou a história de algum amigo? Não me lembro. O que chamou a atenção do búlgaro foi uma certa arrogância do irlandês. Joyce teria dito: “Faço a barba sem me olhar no espelho”.

A perplexidade ou antipatia de Canetti, que parece não ter gostado do autor de Ulysses, ficou na memória. Certamente, havia uma admiração, pois não estariam eles enterrados tão próximos, não seria obra do acaso. Se houve algo por acaso nessa história, foi descobrir que o hotel ficava tão perto desse cemitério suíço.

Canetti sobreviveu a duas guerras mundiais e analisou o espírito maligno dos movimentos que cultuavam a morte (fascismo e nazismo). Poucos autores deixaram registros tão humanos e vivos, como os dos livros “A língua absolvida”, “Uma Luz em Meu Ouvido”, “O Jogo dos Olhos” e “Festa Sob as Bombas”. É impressionante como a morte rondou sua vida e como ele se tornou um crítico da mortalidade.

“Amaldiçoo a morte. Não consigo agir de outro modo. E mesmo que eu fique cego a respeito, nada posso fazer; eu empurro a morte para longe. Se eu a reconhecesse, seria um assassino”, disse o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1981, no caderno de anotações sobre a morte que escreveu de 1942 a 1993. O material foi reunido no livro “Sobre a Morte”, no ano de 2003. Nestes escritos, Canetti fez questão de deixar um texto irritado, crítico e provocativo: “Sobre os sentimentos gerados pela visita a cemitérios”. É certamente um puxão de orelhas, uma reprimenda, para o visitante brasileiro do Fluntern.