Máscaras, maçadas, marotices e mandingas

Máscaras, maçadas, marotices e mandingas

Outro dia, viajando pelo interior de Goiás, eu vi um sujeito montado a cavalo e usando máscara. Achei a cena inusitada: cavaleiros mascarados me remetiam ao cinema. De cara, lembrei-me do Zorro com sua mítica máscara negra, que era mais um adereço para compor a figura do herói, junto com o chapéu, a capa e a espada. Em outros filmes, a máscara era um apetrecho para ações fora da lei, como em “O grande Roubo do Trem”, onde pistoleiros de bandanas saqueavam os passageiros e fugiam pro mato, cavalgando seus mustangs. Acho pouco provável que o cavaleiro goiano tivesse a intenção de assaltar o único banco da cidade. Aquilo era apenas um sinal dos tempos: a máscara tornara-se um acessório indispensável para todos, inclusive para os cavaleiros.    

Até março de 2020, viajávamos num voo tranquilo quando o piloto Tedros Adhanom anunciou o período de turbulência: o mundo enfrentava uma pandemia. Quase imediatamente, máscaras caíram à nossa frente e, a partir daí, seriam nossas companheiras inseparáveis. Elas modificariam nossa aparência, embotariam nossos sentidos, mudariam a nossa forma de viver. Tedros, com seus expressivos olhos etíopes, nos alertava que estávamos sob um ataque silencioso e mortal. Surgia uma nova ordem mundial: além das máscaras, precisaríamos de distanciamento social e álcool gel nas mãos. Esses novos hábitos seriam imprescindíveis para todos os viventes do planeta (inclusive presidentes de países sul-americanos). Não havia tratamento. Não havia vacina. A única saída era a prevenção.

Diante da importância crucial das máscaras na proteção individual e, principalmente, coletiva, as prefeituras emitiram decretos tornando seu uso obrigatório nos espaços públicos. Aí começavam as maçadas (chateações). Com exceção dos trabalhadores da saúde, a maioria das pessoas não estava acostumada a suportar aquele troço tapando a boca e o nariz o tempo todo. Era maçada pra todo lado. O sujeito saía de casa sem máscara; quando se dava conta, praguejava: “esqueci a p. da máscara. Vou ter que voltar pra buscar”. Quando a usava por muito tempo, sentia aflição, respirava mal, doíam-lhe as orelhas, não conseguia falar direito, sentia sede, fome. Alguns chegavam a admitir que a máscara lhes afetava até mesmo a audição. Um verdadeiro tormento.

Para lidar com tantas aporrinhações, sobrevinham as marotices, as artimanhas. Acontecia o seguinte: o camarada saía de casa com a máscara na posição correta, cobrindo nariz e boca. Era a lei. Com o passar do dia, iam aparecendo as demandas para liberar a entrada do aparelho digestivo, respiratório ou ambos. Vinha a necessidade de beber água, comer, fumar, espirrar, conversar abertamente, ou mesmo um surto daquilo que o goiano chama de “sapituca”, ou seja, uma inquietação súbita, um desejo incontrolável de se livrar de algo que incomoda. Como o sujeito não podia simplesmente arrancar a máscara e atirá-la na primeira lata de lixo, ou mesmo na via pública, ele lançava mão do princípio da reversibilidade: tracionava a azucrinante para baixo e a ajustava numa posição mais tolerável.

Andando pelas ruas, vemos gente usando máscara de tudo que é jeito. Para melhor visualização das tais marotices, classifiquei a posição das máscaras em vários níveis, descritos a seguir.  Nível 1: cobrindo nariz, boca e queixo (padrão recomendado pela OMS). Nível 2: imediatamente abaixo do nariz. Nível 3: abaixo da boca, cobrindo apenas o queixo. Nível 4:  no pescoço. Nível 5: dependurada em uma das orelhas. Esse último nível, sendo posição instável, costuma ser usado apenas por alguns minutos. Nos demais, a injuriante assume posição firme e pode ser mantida por longos períodos. O nível 4, peça em torno do pescoço — à moda de um colar — é a forma mais comumente observada, seja pela estabilidade e conforto que proporciona ao usuário, seja por motivo fashion.

Entretanto, o mundo das máscaras não é apenas de aborrecimentos e pequenas infrações. Existe a parte boa: as mandingas. Explico ao leitor por que escolhi a palavra mandinga: primeiro, porque gosto da cultura afro, e segundo para deixar meu título com 4 emes, aumentando-lhe a sonoridade. Emprego-a no sentido de sortilégio, de encanto feminino. As máscaras intensificam a expressão do olhar. As mulheres ficam mais bonitas, mais enigmáticas, feito dançarinas persas. O rosto feminino agora é cabelo e olhar. Surge a moda pandêmica: máscaras de seda, de cetim, enfeitadas com rendas, com strass, com paetês. Enquanto conversa com a moça, o rapaz devaneia: “como será o sorriso dela? E o nariz? Será fininho? Arrebitado?”. Surge um fetiche.

Falando um pouco mais sério, está claro que as máscaras estão fazendo história, marcando uma era. As maçadas ainda existem, mas nós aprendemos a conviver com elas. As marotices, condeno-as. Gracejos à parte, o uso inadequado das máscaras aumenta o risco de autocontaminação. As mandingas são amenidades necessárias, refrigérios que inventamos para sobreviver ao horror.  Apesar de todo o desconforto, as máscaras salvaram e salvam muitas vidas, embora o presidente continue a negar a ciência. Do alto da sua ignorância, já fala em desobrigar o uso delas. Na verdade, ele também usa máscara, mas a dele não é feita de tecido ou TNT, mas de hipocrisia e outros substantivos correlatos.