Será também dos terrivelmente canalhas o reino dos céus?

Será também dos terrivelmente canalhas o reino dos céus?

Há miolos de Deus espalhados sobre os para-brisas dos carros. Só que não. Resvalara o projétil por milagre profano. Todos estão contentes agora. Quase todos. Caiu o derradeiro bastião da democracia no país. Até as baratas desertaram do exército de homens bem-intencionados. Mais do que o chão, perdi a esperança. As ruas seguem infestadas gente que exibe os punhos para o alto e range os caninos enrolados em camisas-de-força com as cores da bandeira. A partir de agora, fica decretado que o símbolo da pátria passa a ser o 38. Ao contrário do que se imaginava, as boas ideias não são à prova de bala. A turba avança em salvas metastáticas. Urinam-se sem asco. Cospem-se sem medo dos perdigotos e da morte. Pelo que se depreende dos maus hábitos, a nação estará congelada por prazo indeterminado, sujeita a verões jamais vistos, a invernos com corações gélidos, a primaveras sem cio, a outonos sem o viço convencional de flores despetaladas por gineceus inférteis. A moda vigente é a faca entre os dentes em defesa da desonra como se fosse honra e da propalada apologia à burrice. Mamilos róseos, fingidos e pontiagudos apontam sobre capôs de carros luxuosos. Ninguém se atreve a cantar o hino nacional, pois, ninguém sabe a droga da letra. Percebe-se um olor nauseabundo de enxofre. Bumbuns sorriem em réplicas de silicone. Tem algo de podre batendo no peito e não é coração. Tripas. Sim. Tudo indica que sejam tripas se passando por coração, a pulsarem em sacos de estrume. De hoje em diante, para xingar presidente só com habeas-corpus no sovaco. Ir-e-vir só se for para conferir se ainda estou na esquina. Não estou mais na esquina, companheiros. Não estou em lugar algum. Perdi o rumo, o chão e a alegria de viver por minha conta e risco. Ir-e-vir significará ficar paralisado em exercícios de me tornar pedra. Os homens — sempre os homens: quando não estão a socar mulheres, querem fazer sexo com elas — sacam pistolas da cintura e atiram para o alto, contra um céu-de-brigadeiro. Por um beiço-de-pulga não acertam as cabeças de Deus e do próprio brigadeiro. Papai-de-céu, que tudo vê, que tudo sabe, que quase todo tipo de sentimento sente, observa boquiaberto os festejos hiperbólicos dos terrivelmente patriotas e balança a cabeça — Deus é careca, mas, misericordioso — em sinal de reprovação. “Tens mesmo muita sorte por seres divino, por desviares a bala num simples piscar de olhos, por nenhuma das tuas criaturas ter estourado os teus miolos, oh Senhor”, comento. “Onde foi que eu acertei, meu filho?”, ele pergunta, vacilante, ao passo em que abre com estalo de dedos mais um garrafão de vinho que era antes mero tonel de água. Todos estão transformados em contentes, agora. Quase todos. Nenhum sinal de felicidade legítima no ar, a não ser, lampejos de sorrisos noir, despigmentados de humanismo, paralisados pela toxina botulínica que deixa todos com aquela cara de porco de porcelana. Não se vislumbra nenhum impropério adequado que resuma a ópera, muito menos, o menor indício de solidariedade que valha a pena ser compartilhado. Tudo soa falso como uma prece, triste como uma árvore a tombar pela mão humana. Resta nos corações dissidentes aos quais me associo um sentimento condoído, construído às custas de desalento e de lástima. O fanatismo propaga-se rápido, vira outra peste. A sensação é para quem sente. Parece que os corações, finalmente, pararam de bater no peito dos homens que se tornaram pedra. Antes fossem somente tripas.