Estamos por nossa conta e risco

Estamos por nossa conta e risco

Estamos por nossa conta e risco. Põe os teus discos para tocar. 33 rotações por minuto. Por favor, dá-me tua mão. Os objetos da sala estão a girar. E eu que julgava ser o sol. Deve ser por causa do merlot, do Rivotril ou da droga da labirintite. Como diria Cartola, a vida é um moinho. Minha mente merece a injúria de lanças quixotescas. Cada qual combate demônios com as armas de que dispõe. Sim. Vou mais devagar com o andor, querida. Põe os teus discos para tocar. Vinil. Eu prefiro os discos de vinil. O ruído da agulha deslizando sobre a bolacha. Ainda agora, os meus pulmões deram sinal de vida. É o familiar Big Bang da tosse seca e improdutiva. A velha asma a renascer das cinzas com o auxílio insultante do clima frio e seco que encobre o planalto central. Sim, eu te amo. Mesmo bêbado, eu te amo. Os vinhos arrancam as verdades do oco da gente. Nunca mais quero guerrear contigo. Eu, um legítimo demi-sec? Por favor, não economizes em teus insultos. Eu sou seco. Admito. Reconheço que o maior gesto de carinho de que já fui capaz foi chupar tua xoxota com um Halls na boca e inventar poemas com rimas óbvias. Ri. Ri, mas — por Baco, querida! — não entornes a taça de tinto sobre a vitrola. Tens razão. Ninguém tem culpa de nada. Desvirtuamos as coisas. A indústria alimentícia, por seu lado, fabrica pastilhas de menta para refrescarmos a garganta, sem considerar o advento esdrúxulo das línguas e das bocetas. Eu escrevia poesia como estratégia de conquista. E conquistava. Mesmo rimando mal, eu conquistava. Foi assim conosco, a despeito do famigerado plágio ao poema do Neruda. Sim, tens razão. Sou tão estranho quanto um parto pelas vias naturais. Um ser vivo expelido das entranhas de outro ser vivo, como se fora um mero caroço de abacate. Não existe nada mais cru, brutal e assustador em toda a natureza animal. No malfadado processo de criação, Deus fez as vezes de um Luis Buñuel. Que desarrazoado. Não achas nem um pouco absurdo uma mulher carregar durante meses um ser humano em miniatura dentro do próprio estômago? Sim. Mera força de expressão. Entendeste bem o que eu quis dizer. Adoro ouvir Nina Simone. Escolheste bem o repertório esta noite. Exame? O meu exame, tu perguntas? Sim. Resultou negativo. Eu já sabia. Esses médicos querem nos impor os seus temores durante a maior parte do tempo, mandar na vida das pessoas e dos germes. Preciso de uma lupa para enxergar alguma saída mais honrosa. Os sonhos são como os micróbios: não param de proliferar e acabam por funcionar muito bem aos bandos, coonestados com a juventude que eu já perdi. Perdi tanta coisa ao longo do caminho. Proponho começarmos do zero, querida. Lavo a minha boca com sabão e creolina se parares de dizer o quanto ando irônico e amargo. Não me furtarei em dizer-te obscenidades fora de qualquer contexto. Xingamento é redenção. Crê. Estou mais ébrio do que um velho senador da república. A pior droga que existe no mundo não é o álcool, mas, o dinheiro. Vê só Suas Excelências afrouxando o nó da gravata para insultarem-se mutuamente. Hipócritas. Selvagens. Cambada de vendilhões. Essa Comissão Parlamentar de Inquérito é um circo de horrores; esse governo, um aleijão em nossa dignidade enquanto povo. Quando nos conhecemos, éramos pobres e infelizes. Hoje, somos apenas infelizes. Jesus? Ora, Jesus está demasiadamente cansado de ladainhas e de falsas promessas quanto ao bem viver. Se, por milagre ou por ferrugem, os pregos se soltassem da madeira, Jesus escapuliria de nossas vidas com a pressa de um terremoto. É o diabo quem foge da cruz? Pernas pra que te quero. Jesus foge também para bem longe dos homens. Eu? Eu tenho fé na música. Põe os teus discos para tocar. Estamos por nossa conta e risco. Tenho fé na chuva. Tenho fé no pudim de leite condensado. Tenho fé em Scarlett Johansson. Tenho fé nos contos macabros de Edgar Alan Poe. Tenho fé no porre com vinho, nas canções românticas com as quais me brindas neste exato instante. Tenho fé no rio caudaloso, calado e honesto que escorre para o mar, com a consciência limpa, no que tange às imundícies humanas. Inumano é não sentir. Sinto muito, meu amor. Tenho fé nos seres comuns, irrisórios, nos fenômenos ordinários que a maior parte das pessoas simplesmente despreza. Uma abelha diabética. Um marimbondo que se acovarda em ferroar a carne. Um urso feroz que hiberna por semanas e, mesmo assim, acorda com a sensação de sono atrasado e com a ferocidade à toda prova. Quisera dormir e acordar na primavera de 1967. Tu tinhas 16; eu, 20. Festival Internacional de Monterey, Califórnia. Lembro-me do The Mamas & The Papas encerrando o festival, a cantar “Dancing in the street”. Nunca dancei na rua. Hoje e sempre, sinto vergonha do meu corpo, dos requebros e da malemolência. Foi Mama Cass quem falou ao microfone: “A partir de agora, vocês estão por sua conta e risco”. Não sei se o que ela quis dizer, exatamente, com aquelas palavras. Não sei se te recordas daquela fala. Suponho que ainda não fosses fluente na língua inglesa. Éramos tão jovens. Éramos tão volúveis. Acreditávamos tanto que a arte salvaria a espécie humana. Uma espécie de mágoa envenena-me o corpo. Saudável, pero, deprimido? Eu? Só levanto as mãos para o céu para testar a direção do vento. Escapar ileso de tumores, de olores e de hemoptises não significa exatamente chegar aos setenta e tantos anos com o coração batendo a mil, num compasso aceitável pela ciência. Estou a falar de cognição. Outro dia, assisti a um vídeo antigo de Michelle Phillips cantando “Dedicated to the one I love” e comecei a chorar. Quem é Michelle Phillips? A loira bonita, esguia e afinada do The Mamas. Por que chorei? Porque ela ficou velha. Não rias. Falo sério. Põe os teus discos para tocar. Estamos por nossa conta e risco, nunca mais te esqueças disso, escuta ao que disse a falecida Mama Cass. Malditos anos 1960. Sexo. Liberdade. Paz. Amor. Flor. Poder. No fundo, não podemos nada, minha querida companheira de quarto. No frigir dos ovos, não podemos praticamente nada, senão nos embriagar com memórias mofadas, tatear as paredes para não cair de maduro sobre o assoalho e ainda por cima colocar toda a culpa pela vertigem no vinho. O vinho é inocente. Não sei onde vou parar com tanto passado rondando a minha mente. Quem sabe, sobre o tecido puído do divã de um terapeuta calvo, homossexual, com ares fúnebres e igualmente combalido. Quem sabe, no balcão séptico de uma drogaria, a negociar descontos ridículos, miseráveis, durante a compra de psicotrópicos legítimos que nunca cogitei usar quando tinha 20 anos. Quem sabe, com o dedo no gatilho de uma arma ou na válvula de descarga da latrina para empurrar toda essa merda de memória afetiva esgoto abaixo. Dormir? Agora? Eu? Ainda é cedo amor, mal começaste a conhecer a vida. Cartola. Foi Cartola quem compôs esses versos, minha pequena joia. Não quero dormir agora. Eu não preciso descansar só um pouquinho. Eu quero cansar o tempo. Eu quero pensar. Eu quero pensar muito, até fundir a fantasia com a realidade. E tomar taças de merlot dedicadas àquela pessoa que eu amo. E segurar a tua mão. E começar do zero. E ouvir toda e qualquer droga de música bonita que tu puseres para tocar, a fim de aplacar a solidão e a fúria.