Procure direito o lázaro escondido no peito

Procure direito o lázaro escondido no peito

Caçavam-me há semanas. Esperança fora encontrada morta, a boiar num lago na Cidade ocidental. Acusavam-me do hediondo crime de fugir da realidade. Era o personagem mais lazarento e odiado da história desde Jesus Cristo. A cruz, para mim, era pouco, dizia-se. Experimentado em mato, no mato me refugiei. Bebia água de pedra. Banhava-me em poças de lágrimas. Rastejava entrelaçado às cobras. Mastigava frutos nativos do cerrado. A maioria dos morcegos era herbívora, mas, o povo queria mesmo era sangue.

Ouvi ruídos crepitantes no céu que cobria o parque. A princípio, julguei que fossem as pás de hélices dos helicópteros a riscarem o céu. Nada mais eram do que libélulas de asas azuis, cabelos pretos e unhas pintadas de pólen, a plainar sobre a minha cabeça. Apreciavam-me o ressonar. Cansado de me esconder, tinha dormido profundamente. Aprendia esconderijos com os animais. Eram tempos de estio. Tínhamos medo de raio, de fogo e de gente. O segredo para não ser pego era me manter escondido nas grotas. Era tão mateiro quanto o lobo-guará e o tamanduá-bandeira. No meu exército só tinham bichos. A única arma, o silêncio. Na maior parte do tempo, fingia-me de morto — estaria ainda vivo? — feito um urutau.

A humanidade não admitia derrotas. Era assim que se ganhavam rugas: rusgas mil, preocupações em demasia e aquela terrível falta de tempo. Se havia justiça entre os homens, autoridade nenhuma haveria de capturar um pobre diabo que tinha matado, por inanição, a esperança-em-dias-melhores. A maior parte da natureza viva estava morta, como numa pintura. A fauna. A flora. As pedras cantantes. A maior parte de mim se resumia a nada. Nadava em cachoeiras sem peixes, tentando me reconciliar com a lama.

Não me restava grande coisa, senão a fuga amarga e a sensação de afago do capim nas minhas pernas. A coragem de sumir pinicava por dentro. Em alguns dias, horas ou minutos, seria capturado. Ninguém prescindia da fé. Ninguém admitia que um sujeito, um único sujeito nesse mundão-velho-e-sem-porteira seria capaz de consumir um sentimento tão primário dentro de si, abandonando-o para que flutuasse à própria sorte, solene e vívido como um raio de sol, na superfície luminosa de um lago na Cidade Ocidental, tal e qual uma folha seca, tal e qual um messias a gatinhar sobre a água.

O maior milagre de todos era enlouquecer. As águas, quase sempre, eram calmas; os pensamentos, revoltosos. Já fazia dias que eu me embrenhara pelas coivaras. Árvores anãs e arbustos corcundas pelejavam em me ocultar. E eu me escondia do jeito que dava: a cavoucar barrancos, a roer madeiras, a amontoar-me junto às pedras. Eu já tinha perdido a minha alma. Mais dia, menos dia, me transformava num bicho ou num braço-de-cipó.

De repente, ouvi gravetos estalando. Pedregulhos rolaram pela trilha sinuosa na encosta de um morro. Alguém que nunca existiu se aproximava. Todo aquele tempo enfurnado no mato e eu não tinha aprendido como se voava. Eu era uma vergonha inconfessável para a maioria dos pássaros. Desentoquei. Corri por um trieiro tortuoso, cravejado de formigas cabeçudas. Com cabeças tão grandes, no que pensariam tais insetos? Pensei ouvir gritos. Seriam vozes humanas ou a velha consciência a ganir? Esmagava a relva numa tentativa infrutífera de escapar. Não tinha jeito. Era uma espécie de regra particular: eu sempre fugia, mas, nunca escapava de mim mesmo. Acelerei os passos. Corria, suculento e ágil, feito um preá aos olhos de um cachorro-do-mato. Sentia os derradeiros resquícios de humanidade a esvair pelos poros.

De repente, a dor lancinante. Tinha sido alvejado nas costas. Flechas feitas com talos de rosas perfuraram-me a carne. Tudo no meu corpo era espinho. Tombei no caminho, triste como uma pedra, oco como um velho morador de um asilo. Fugir nunca levava a lugar nenhum. Desfaleci, plenamente consciente de que inocência demais também matava, e que o pior lugar para me esconder era na vastidão insondável de um enorme vazio interior.