Eu sei em quem vocês votaram no verão passado

Eu sei em quem vocês votaram no verão passado

— O que vai ser para hoje, amiguinho?

— Desculpe, estou só dando uma olhadinha.

— Tem que pagar para olhar.

— Tem que pagar para olhar?

— Sim, tem que pagar para olhar.

— Isso não existe.

— Deus não existe; as normas da casa, sim.

— Mas, que absurdo.

— Absurdo são 350 mil mortos pela pandemia. Ninguém veio aqui para fazer graça, meu chapa.

— Não estou pedindo nada de graça.

— Está, sim. Está pedindo para ficar só olhando. E, de graça, ainda por cima. Aqui não, meu jovem. Aqui não é o Congresso Nacional. Temos um regulamento.

— E quanto custa para ficar só olhando?

— 30.

— 30?

— Você tem algum problema auditivo, meu filho? 30, eu já disse.

— Que abuso.

— Abuso é dizer que a Terra é plana ou que viu Jesus Cristo trepado numa goiabeira. Abuso é um sujeito vir até aqui, caminhando com as próprias pernas, só para ficar olhando, de boa, sem pagar nada por isso. Isso, sim, é um abuso, e dos grandes. Isso aqui não é igreja, mas, com certeza, visamos ao lucro, meu jovem. 

— Desculpe. Acontece que eu estou meio por fora dos preços. Já faz muito tempo que eu não saio de casa, que eu não frequento lugares como esse. Medo da pandemia, sabe como é.

— Ok, gatinho. Gostei de você. Está desculpado, desde que pague por alguma coisa. Que tal uma chupada, só para começar?

— Amostra grátis?

— De graça, nem vacina chinesa na testa. Vivemos num mundo capitalista, irmãozinho. Isso aqui não é a Santa Casa de Misericórdia. Por acaso, eu tenho cara de Madre Tereza de Calcutá para ficar fazendo caridade a estranhos? Será que já estou tão derrubada quanto dizem por aí?

Ambos sorriram; os demais clientes, também.

— E quanto custa uma chupada?

— 50.

— 50?

— Ô, meu deus. Virei um gravador, agora.

— Não tá caro isso, Marilyn? — a moça se parecia à beça com a Marilyn Monroe.

— O produto é de primeira, camarada. Sem fungos. Sem microrganismos nocivos à saúde. Além de tudo, o sabor é incomparável. Você não vai se arrepender, meu filho. Pode ir fundo.

— Se eu não gostar, posso pegar o meu dinheiro de volta?

— Nem fodendo.

— Caramba! Que país é esse? Cinquentinha por uma simples chupada? E se eu quisesse comer? Ia querer a minha alma, moça?

— Comer aqui ou comer fora?

— Acho que comer aqui mesmo. Tem algum lugar mais reservado? Tem gente demais nessa birosca. Tá todo mundo pagando para dar uma olhadinha ou só o trouxa aqui?

— 100, se for comer no local.

— 100?

— (…)

— Desculpe, moça. Não me leve a mal. Estou mesmo muito desatualizado por causa da quarentena.

— Gasolina a 7 pilas o litro. Gás de cozinha, 90. Dolarizou a economia, anjinho. O câmbio está escandaloso, pornográfico. O ministro da economia anda mais perdido do que cego em suruba. Isso acaba refletindo nos preços de tudo, até aqui. Você não lê os jornais?

— Quem precisa de jornal, quando existe o WhatsApp? Não careço ler jornais para entender que a economia está calamitosa.

— Eu avisei. Quem mandou votar no psicopata?

— Fomos obrigados. A gente precisava tirar a malta do governo.

— Entendi. Mas, você veio aqui para debater a política interna do país ou o quê? Se não quiser gastar o seu suado dinheirinho é melhor ir andando, amiguinho.

— Tudo bem. Você ganhou. Eu vou querer.

— Vai querer o quê: ficar só olhando, chupar ou comer?

— Acho que vou comer. Eu mereço me dar este prazer, este luxo, depois de tanto tempo de isolamento social.

— Vai comer no local?

— Vou comer em casa. Tem muita aglomeração no seu estabelecimento. Morro de medo de pegar COVID. Tenho só 27 anos. Não sou famoso o bastante para morrer de overdose. Acho que, vacina para mim, só na próxima encarnação.

— Esse presidente não tem alma, meu amor. Ele não tá nem aí para o seu carma. E aí? Vai levar quanto?

— Meio quilo.

— Meio quilo?!

— Ficou surda de repente, Marilyn?

Ambos sorriram; os demais clientes, também.