Que tipo de povo elege um idiota?

Que tipo de povo elege um idiota?

Nunca pensei que isso poderia acontecer comigo, até que, um dia, conheci Elvira Hancock numa mansão em Park Always. Sua vulgaridade e mau gosto me cativaram desde o início. A deputada vestia um impecável conjuntinho com as cores da bandeira nacional, com o vitorioso slogan da campanha para infernizar o mundo — “No cão a gente acredita” — bordado nas ancas. Tocava a uma versão funk do hino nacional, quando cheguei ao regabofe. Para variar, ninguém sabia de cor a maldita letra. A falta de cultura era a maior das pandemias.

Correligionários comemoravam a eleição do deputado Cara-de-Cicatriz para a Presidência da Câmara dos Horrores. O palacete fora cedido por um bajulador do governo, um empresário conservador nos costumes e liberal no costume-de-extorquir, o qual já tinha se declarado inocente pelos crimes cometidos e favorável ao reajuste periódico das propinas, à volta da tortura com música sertaneja e ao retorno imediato dos militares aos quartéis.

O lugar estava apinhado de pessoas extrovertidas e sem compostura: aliados do baixo clero, políticos indiciados, assessores fantasmas, um chefe de nação destituído, prostitutas de fino trato, atores medíocres, jornalistas de merda, haters, hackers, crackers, craques estupradores, blogueiros neofacistas, influenciadores digitais inexpressivos, recos traficantes de cocaína, generais passivos na ativa, torturadores aposentados, cães de aluguel, pastores alemães, padres endiabrados, médicos negacionistas, juízes afáveis, ministros de estado com ensino médio incompleto, cadáveres da ditadura militar, dondocas perdulárias da extrema direita, a nata do lixo moral. Quando a banda de milicos, finalmente, afinou as armas, encontrou o compasso certo e sapecou “A gente somos inútil”, a casa quase veio abaixo.

A maioria dos convivas parecia não possuir alma. Quase ninguém usava máscara para ocultar a cara-de-pau. Um grupelho de senadores senis — uma horda decrépita de homens cancerosos em convalescença, velhotes aparentemente fofos, porém, não se iludam, malvados ao extremo — estava claramente embriagado, divertia-se, gargalhava ao comparar entre si os volumes descomunais no baixo-ventre, que nada mais eram senão pacotes de dinheiro, em moeda corrente, entremeadas aos falos muxibentos, inoperantes e decadentes. O câncer estava sendo benigno ao fazer a sua parte, contudo, não era uma tarefa fácil aniquilar gente maligna.

Apesar da pompa e do luxo, a ventilação interna da casa era precária, fazendo com que o vapor exalado pelos poros e orifícios da turba grudasse nas ventas da gente. Dava para sentir os exércitos do vírus chinês marchando traqueia adentro, invadindo os pulmões e sendo dizimado por partículas microscópicas de cloroquina. As Forças Armadas — menos amadas do que nunca — precisavam ver aquilo, aprender como se fazia guerra aos micróbios.

Garçons humildes, quase todos pretos e lascados, esperançosos na volta imediata do auxílio emergencial para mitigar os danos econômico-sociais da pandemia, estavam indignados por ter que servir comida à uma elite tão cínica, inculta e ardilosa que há décadas afanava os recursos do erário. Serviam para os delinquentes de colarinho-branco os pavorosos canapés de couro-de-pobre, coquetéis de ivermectina e os propalados kits anti-Covid que, se não matavam o vírus, ao menos, impulsionavam a indústria farmacêutica nacional e garantiam ganhos extraordinários em ações na bolsa de valores.

Quando avistei a deputada Elvira Hancock dançando o funk, descalça, descendo até o chão, como se estivesse a cagar no mato, ao som de “A burguesia fode”, minh’alma, que eu presumia ter fugido do meu corpo nas últimas eleições, congelou. Senti algo protuberante avolumando-se entre as coxas, comprimindo as bolas, e não eram pacotes da boa e velha moeda norte-americana escondidos na cueca. Abarquei a cintura da moça e rebolamos até suarmos os cofrinhos.

Àquela altura da festa, a banda já estava desencontrada o bastante para saber que não tinha nascido praquilo. A maioria dos convidados já se encontrava chapada, bêbada, pronta para sair dirigindo um automóvel pela cidade, filmando uns aos outros com celulares de última geração cedidos pelo legislativo. Ali se encontrava o suprassumo da parvoíce, uma corja ricaça, ambiciosa, egocêntrica, que odiava a cultura, a democracia e a liberdade de expressão. Ninguém estava preocupado se os soldados estavam desafinando, se estavam atravessando, desde que fizessem algum barulho e não parassem de tocar a droga da música. Quando a namorada do deputado Cara-de-Cicatriz, o grande homenageado da noite, esticou os seus delicados dedinhos fura-bolo para o alto — em nome de Jesus — puxou um “Pai Nosso” e cantarolou “Eu só peço a Deus um pouco de honestidade”, aproveitamos o ensejo para escapar da multidão.

Precisava um mapa para andar pelos corredores daquela mansão edificada num terreno público, invadido, com dinheiro surrupiado do estado. Creio que fomos parar na suíte do casal. Eu já me desapegara de qualquer melindre. Ética nunca fora o meu forte. Faria sexo com aquela vagabunda — vagabunda, no bom sentido — na cama do próprio Cara-de-Cicatriz. O risco aumentava a tesão. Não estávamos nem aí. Arrancamos a roupa um do outro, apressados, desajeitados, bêbados que nem Boris Iéltsin. Notei que ela também usava uma tornozeleira eletrônica, com o brasão da república, presa à canela. Se os federais nos monitorassem na cama do chefe, seria um verdadeiro escândalo. Elvira caiu de boca, demonstrando familiaridade, vasta experiência em conchavos, achaques e confraternizações políticas do núcleo duro.

Fiquei vislumbrando aquela cena, de cima para baixo, tonto, dono da situação, o rei da cocada-preta. A ilustre deputada tinha mesmo o dom para a masturbação. Éramos uns sacanas, uns desgraçados. No fundo, a gente não prestava. Só que ninguém estava se importando com isso. Nem nós, nem a classe média, nem o povão. Um tipo de gente que vota em bandidos e elege idiotas. Foi bonito despejar na cara dela todo aquele leite condensado superfaturado.