Orgulho de ser trouxa

Orgulho de ser trouxa

Taylor nasceu de parto anormal, cravando as unhas das mãos e dos pés nas reentrâncias e circunvoluções elástico-gelatinosas do canal do parto. Teimoso, histriônico ao extremo, quase se enforca no cordão umbilical. Supõe-se que pressentia um mundo pior do lado de fora do claustro materno. “Parecia mais um carrapicho encrustado nas entranhas da pobre”, descreveu a parteira exausta de tanto partejar. Taylor foi fruto da conjunção carnal de um casal de trouxas. A mãe, professora de escola pública de um povoado nos confins do país, cuja aposentadoria, hoje, se muito, soma o equivalente ao auxílio-paletó de um deputado federal. A mulher-trouxa gostava de ensinar as crianças a ler e a realizar operações aritméticas: somar, dividir, multiplicar. Subtração não era o seu forte; ensinava a meninada a diminuir por mera obrigação formal. O pai, formado em Direito, nunca exerceu direito a profissão advocatícia alegando que não sabia mentir. Acabou aprovado num concorridíssimo concurso para o Banco do Brasil. Naquela época, funcionário do BB tinha status de juiz de direito, comprava fazendas, criava gado nelore e se casava com a moça mais bonita da cidade. Era um trouxa ambicioso, contudo, o homem mais ético e honesto que Taylor conhecera na vida.

Taylor nascera, portanto, com uma estrela na testa, a marca dos trouxas emergentes da classe média. Um trouxa-raiz não é muito afeito a riscos e passa por temores de ansiedade. Tem medo da justiça. Tem medo da polícia. Tem medo de ter os pensamentos presos por engano ao defender abertamente os princípios elementares da constituição cidadã. O trouxa com pedigree acredita que uma verdade repetida inúmeras vezes jamais deixará de ser verdade. Toda trouxa que se preza segue regras, pactos e regulamentos. O trouxa, antes de tudo, é um caxias; ele pactua com a legislação vigente. Já vi gente dizendo que os trouxas se acham, que falam baixinho, que não furam filas, que esperam a sua vez, que são discretos, que devolvem pertences que não lhes pertencem e que possuem o péssimo hábito de cumprir deveres e reivindicar direitos. Todo trouxa é um chato. Desde que não esteja desempregado, trouxa que é trouxa paga as suas contas em dia. Por falar nisso, um trouxa legítimo jamais pede ao patrão para ser demitido. De tão trouxas, os trouxas têm sido frequentemente taxados como metidos. A maioria esmagadora dos trouxas acredita nalguma espécie de divindade — nenhum trouxa é perfeito —, nos ditames da ciência e fazem questão de se vacinar contra doenças infectocontagiosas.

O bom trouxa à casa torna. Taylor tira o dia para levar mantimentos aos pais. Por causa da pandemia e do consequente distanciamento social — que apenas os trouxas obedecem — a sua idosa mãezinha não sai de casa faz nove meses. Os velhos trouxas são disciplinados e, regra geral, medrosos. Mesmo aos 80, o pai de Taylor carpe um pedaço de terra fofa da horta domiciliar, carregando à canela um saco de mijo amarrado com cadarços de tênis. A cena é tragicômica. O senhorzinho não devia estar se esforçando tanto. Teve a próstata arrancada por uma britadeira hospitalar e o seu coração chagásico está flácido como uma bexiga, dilatado como uma abóbora. O velhote diz que se sente melhor trabalhando e que não tem medo da morte. Ele fala com arrogância, como se não fosse um trouxa de origem humilde. Filho de trouxa, trouxinha é. Taylor pede ao pai que não extrapole tanto, que não dê chances ao azar. “Para morrer, basta estar vivo”, ele disfarça o fato de ainda ser um trouxa àquela altura da vida.

Mas, a morte, que a todos alcançará, sem exceção, tem lá as suas preferências pelos não-trouxas. Famílias de trouxas possuem códigos de honra do tipo “Quem ama cuida”. Bobagens. Perdas de tempo. É por isso que seguem sendo trouxas ao longo das suas existências terrenas, por mais que sejam ridicularizados pelo seu comportamento cívico irrepreensível, pela maioria esmagadora da camada não-trouxa da sociedade, um tipo de gente grossa, deselegante e mentirosa que despreza a cultura, o conhecimento e que, por pura falta de hábito, não sabe sequer identificar o sarcasmo e a ironia ao lerem um texto.