A tristeza mata mais do que o Coronavírus

A tristeza mata mais do que o Coronavírus

Cansei-me dos ajeitamentos entre as almas gêmeas, dos amores jurados para sempre, até que a morte os separe. Mário morreu atrás do armário. Não riam. Isso não é uma piada. Mário foi encontrado desacordado por Maria, a diarista. Pessoas morrem. Amores eternos, idem. Rios sufocados por plástico e espuma desembocam no mar, mortos por inanição e pelo efeito natural da gravidade.

A geografia das tragédias humanas confunde o itinerário no meu coração, que bate de tudo quanto é jeito, que pulsa para tudo quanto é lado. Minhas tardes sangram para o lado que nariz aponta, ou seja, para o nada. Desenhou-se mal o dia com a notícia do passamento do Mário. 2020 está marcado pelas perdas e pelos desencontros; um ano que jamais será esquecido, que nem a Tragédia de Sarrià, em 1982.

A vida não é um jogo, mas, um amontoado de fatalidades e de casualidades que acontecem vinte e quatro horas por dia, como uma bola chutada de mansinho que, fatidicamente, escapa das mãos de um goleiro-de-mão-cheia e entra no gol. Maldita pandemia que me sopra nos ouvidos incontáveis histórias tristes, a pulmões plenos de insensibilidade. Cansei. Sinto gastura dessa peste invisível que assola o planeta. Dizem os poetas — meus camaradinhas, meus irmãos na orfandade das incertezas — que o vírus replica melhor nas lágrimas do que no cuspe.

Sei lá. Não foi uma virose que ceifou a vida do Mário. Foi o Calypso, ou melhor, foi um colapso. Suas coronárias explodiram feito um grito de gol há tempos entalado na garganta. Foi com esses termos vulgares, valendo-se de metáfora e de melodrama, que o médico legista — flamenguista inveterado — descreveu o que viu, no laudo cadavérico. É vero: não tenho nada contra o Flamengo, nem contra a morte, nem contra os dramalhões. Apenas, não gosto deles.

Conheci o Mário quando éramos crianças. Fomos contemporâneos no Colégio Marista, que a gente chamava de Colégio Nazista, por causa da disciplina rigorosa. O Mário já era gordinho naquela época. Foi logo apelidado de Mário Gordo por nós. Acho que ele não ligava em ser chamado de gordo, muito menos, o staff diretivo do colégio. Definitivamente, quem tinha autoridade para intervir nas humilhações entre as crianças estava pouco se lixando para a saúde mental delas.

Apesar da obesidade, Mario jogava bem o basquete. Ensacava a bola com elegância, precisão, quebrando a munheca na medida certa, em arremessos quase sempre certeiros. Chuá! Nem dava aro. Era um craque da cesta, apesar da baixa estatura e do corpo socado. Estudamos no Marista até o nono ano. Dali por diante, cada qual seguiu o seu rumo até a vida adulta. Ficamos anos sem nos ver, até o dia em que nos encontramos, casualmente, numa churrascaria. Reconheci o Mário, mais feliz do que pinto no lixo, sentado atrás de um prato de chuletas.

Foi como se a gente tivesse se visto ontem. A conversa rendeu. Praticamente, fomos enxotados da churrascaria, já que um assunto puxava outro e acabamos perdendo a hora. Era o mesmo garoto rechonchudo, gentil e brincalhão da nossa meninice. Mário apresentou-me a esposa, uma mulher também fofinha e risonha. Pareciam feitos um para o outro. De onde os gordinhos tiravam tamanho bom humor? Dos carboidratos?

Despedimo-nos, embriagados de felicidade e de chope, sob promessas mútuas de um reencontro programado, na casa de um ou de outro, sem pressa, sem garçons arrastando cadeiras ou apagando as luzes. Poucos dias mais tarde, recebi uma mensagem telefônica do Mário informando que a esposa tinha “perdido a luta contra o Covid”. Nem sabia que duelavam. Por causa da peste, não teve velório, nem missa, nem o fedor nauseante de coroas de flores. Há males que vêm para o bem.

Fui convidado para a missa de sétimo dia, mas, não dei as caras. Optei em assistir “Sétimo Selo”, pela sétima vez. As coincidências envolvendo o número sete não me assustavam. Para mim, mais uma vez, era apenas obra do acaso. Fazia quase um mês que a mulher do Mário tinha esticado as canelas. Como eu já disse no início, nem bem amanhecia, uma das suas irmãs publicou um aviso nas redes sociais dele, dizendo que o coitado tinha sucumbido a um ataque fulminante, fatal, que nem aqueles do Paolo Rossi, carrasco do escrete brasileiro em 1982, na Espanha.

Óbvio que a comparação futebolística não constava no comunicado familiar. Tudo invenção da minha cabeça. E mais: Paolo Rossi morreu no mesmo dia que o Mário. Mais uma casualidade, como aquela bola entregue pelo Toninho Cerezo, por engano, nos pés do atacante italiano. Não se cruza a bola na frente da própria zaga, conceito básico do futebol. Gol da Itália! Gol de Paolo Rossi! A seleção brasileira estava eliminada da Copa do Mundo de futebol.

Mário estava eliminado do nosso convívio. Menos mal que o infarto tivesse acontecido no dia da faxina. Foi dona Maria, que dava um trato semanal no apartamento, quem o encontrou estatelado no chão. Mário morava sozinho. Não tiveram filhos. Contei o ocorrido para o meu velho. Espírita-de-carteirinha, ele explicou que as almas encarnavam e desencarnavam quase sempre nos mesmos núcleos familiares, aglomerando-se, mais cedo ou mais tarde, nas existências futuras. Eu não via futuro naquela teoria. Reencarnação aludia à carne. Carne aludia à churrasco. E churrasco me lembrava o Mário durante o nosso último encontro.

Papai explicava que, de uma forma ou de outra, as almas gêmeas, em especial, estariam juntas novamente, num infindável exercício de evolução dos espíritos. “Parece um processo tolo e cansativo, pai. É como enxugar gelo…”. Paciente, meu velho reiterava que nada acontecia por acaso, nem mesmo os encontros fortuitos em churrascarias. Continuei desolado. O meu coração cretino era um zero à esquerda, mais parecia um naco de chuleta esperando no prato para ser comido.

Acho que o que matou o Mário não foi o colesterol ruim, nem o fato dele ter parado de jogar basquete, muito menos, as placas ateromatosas grudadas que nem chiclete nas suas coronárias. Acho que o que matou o Mário foi a tristeza. Coisas de almas gêmeas, se é que me entendem.

*Em tributo ao meu amigo Mário