Cultura do estupro: estão querendo nos ensinar a pedir desculpas

Cultura do estupro: estão querendo nos ensinar a pedir desculpas

Estão querendo nos ensinar a pedir desculpas. Nós não vamos aprender. Estão tentando responsabilizar por suas próprias dores aquelas que têm seus mundos devastados pelo toque não consentido, o sexo forçado, o assédio constrangedor. Não vão conseguir. Estão buscando nos gestos e falas e roupas e fotos a argumentação de que negligenciamos a proteção do nosso corpo, fazendo-o de vitrine. Não vão convencer. Estão voltando aos séculos escuros, às trevas que calam, sufocam, maltratam e insinuam que as vítimas são algozes de si mesmas. Não vão triunfar.

De tempos em tempos somos lembradas, por casos de abusos que ganham projeção nacional, que por mais que tenhamos avançado na luta por respeito, ainda padecemos no fosso do preconceito travestido de moral. Ainda que nossas vozes tenham mais alcance do que nunca, volta e meia a repercussão da história de alguma menina violentada nos alerta que perseveram não só a violência contra mulheres como também a insistente ideia de que são elas as autoras de suas desgraças. E assim cai por terra a ilusão de que rompemos a barreira do obscurantismo, e lá vamos nós martelar o óbvio: um corpo estuprado é sempre vítima, em qualquer circunstância.

Soa patético, tamanho o absurdo que reside na necessidade de endossar o incontestável. Como imputar a quem teve a intimidade devassada a responsabilidade pelo que sofreu? E por que milhares de mulheres ainda precisam vir a público rebater tamanha desfaçatez? Em contraste com os becos nos quais são abordadas, as salas secretas de danceterias para as quais são levadas dopadas e o quarto nos fundos da casa que abafa os gritos de socorro, estão as audiências jurídicas protagonizadas por homens que estigmatizam quem busca amparo legal. Em contraste com a roupa suja com os resquícios da violência sofrida e o abalo emocional resultante, está o vídeo grotesco do “comunicador” que esbraveja que uma filha estuprada precisaria lhe explicar a ocasião do ocorrido para que recebesse apoio.

Ironicamente, o autor do comentário vil, conhecido por fazer chacota dos que sob seu olhar “se vitimizam com mimimi” e por debochar do termo “empatia”, clamou por compaixão ao ser hostilizado. A diferença é que, ele sim, é absoluto responsável pelas consequências de seus atos. Escancara-se assim a moeda de duas faces que se tornou o desejo de não ser atacado em massa: quem atira impiedoso sobre o alvo não suporta o contragolpe. As palavras agressivas do advogado, o silêncio omisso do juiz e o vídeo nefasto do “jornalista” são a face pública do que acontece todos os dias longe dos nossos olhos. O choro da menina pedindo respeito, para ao menos ser ouvida, é a ilustração singela do drama de inúmeras mulheres que se veem acuadas para denunciar ou achincalhadas quando têm coragem de falar.

Em que pese o evidente direito do acusado de se defender e o cuidado de não massacrarmos reputações, o tratamento dispensado à garota é demonstração irrefutável do ambiente hostil a que são submetidas vítimas de violência sexual. A cada homem acusado injustamente, há milhões de mulheres buscando se recompor dos abalos físicos e psicológicos causados pelo abuso sofrido. Dentre elas, as de saia curta, as de vestido longo, as de batom vermelho, as de rosto lavado, as de comportamento extravagante e as tímidas, as que estavam na festa e as que estavam em casa, as prostitutas, as católicas, as adultas, as ainda crianças, as sensuais, que instigam desejo, e as que por enquanto estão seguras “porque não merecem ser estupradas”. Todas elas, todos os dias, a todo momento precisando repetir nessa incansável luta: “nós não somos culpadas”.