Copacabana, meu amor

Copacabana, meu amor

Na rua Siqueira Campos, em Copacabana, “saturação” é uma palavra inócua: não dá conta do recado que lhe é dado; não comunica, não executa a mensagem, não é signo. Falta-lhe poder de significado e efeito de significante.  Se tudo no Rio de Janeiro satura, na Siqueira Campos, entre os Postos 3 e 4 da orla marítima da Avenida Atlântica, o derramamento de cores supera até mesmo o derramamento de sangue do cotidiano carioca.

A Avenida Nossa Senhora de Copacabana fecha os olhos para não ver. A rua Barata Ribeiro se acotovela com o Bairro Peixoto, das feirinhas de artesanato. Na fronteira, a favela grita e suspira; desse imbróglio provinciano e cosmopolita, vê-se o Cristo da janela e nos lembramos de certo glamour, logo desfeito, porque sempre alguém passa gritando: “Gostosa! Quentinha! Tapioca!” Não escapou esse contraste de som e paisagem dos olhos azuis do filho do Sérgio, o Buarque de Holanda.

Na Rua Siqueira Campos há um residencial imenso, diluído nas peles do Shopping Cidade de Copacabana. Neste misto de tudo e de nada, a sobrecarga de paisagem urbana extrapola o narrável: não se narra nem se descreve, para o desgosto dos que se perdem na dúvida de Lukács.

Acotovelam-se tudo e todos com a plateia do Teatro Net, os fregueses do Hiper Extra, os clientes de luxo subdesenvolvido dos antiquários sem glamour e empoeirados que aparecem aos borbotões, como se brotassem da terra, mais do que do tempo.

Não se mede o tempo em Copacabana. Sem os arcos atemporais da Lapa, Copa nunca dorme: menos negra do que já fora, tem um acinzentado peculiar, uma brancura falida dos outrora glamurosos no bairro mais idoso da América Latina; a brancura dos turistas com algum dinheiro e sanha por libertinagem sem humildade, cheia de paixão e curiosa pela morte. Os negros e mulatos que fazem o país descer a ladeira para gozar e fazer gozar. A brancura amarela dos latino-americanos que ali se aglomeram e povoam os quiosques e restaurantes: para ser garçom em Copacabana, parece, deve-se ter o espanhol como língua materna.

Abracadabra! Revela-se a mágica do quiosque cubano-caribenho que não dorme. Tem nome de passe de mágica, na saída da Rua Duvivier, Posto 2, ao lado do Beco das Garrafas. Para alguns sem rumo, a Duvivier não tem becos de garrafas, mas becos de palavras, pois é a rua de Ferreira Gullar. Do “Seu Ferreira”, como dizem os mendigos e comerciantes de bairro que ainda chamam os clientes pelo nome e lhes perguntam pelos seus entes queridos com intimidade desinibida. São padeiros, jornaleiros, floristas, todos saudosos do poeta, com anedotas mil a respeito dele.

Em Copacabana tudo gira como torvelinho. Na Siqueira, então, vive-se o centro do torvelinho. É o meio do meio, o olho do olho do furacão onde se vende e se come o olho de quem passa para olhar tanto olho sendo comido nos becos e detrás das árvores, em carros de vidros escuros que chacoalham e gemem, suam, sussurram. As madrugadas são rápidas — se em São Paulo o Sol custa a dar o ar de sua graça, em Copa ele vem cedo demais, como se fosse contaminado pelo voyeurismo sem censura, hedonista, voluptuoso daquelas ruas sufocadas por prédios antigos e árvores em fartura.

Os de Copa são mais cariocas do que os cariocas. Toda a sorte de prazeres e desprazeres sobra ali. Nada é medido ou pesado. Tudo vem em aos montes, em arroubos carregados de proteção e perigo. A ameaça de ontem se torna — Abracadabra, de novo e sempre — o ombro amigo de hoje, o cúmplice de amanhã, que sente, protege e comunga suas dores, ri de sua alegria, deseja-lhe o vento solto e atemporal, sem pressa e sem prezar a vida das presas suas: lealdade é comprar as suas brigas, mais do que beber da sua glória.

Um país às avessas, de quem nada teme porque todos os dias são alto-falantes ligados no máximo; caldeirões que fervem nos olhos e na alma de tudo o que lá respira e conspira.

Tudo em Copa está pronto para viver e para morrer. Vive-se de modo desligado de tudo e imerso em tudo. Vinte anos valem duzentos. Se a média de idade dos habitantes é a maior da linha abaixo do Equador, seria infinitamente, fantasticamente maior caso se pudesse medir a idade das almas. Todo mundo e tudo é velho em Copa. Sem espaço para a ingenuidade. Sem beira para o encanto juvenil. Quem mora em Ipanema vai à praia. Os de Copa nem se lembram que ela existe.

Cidade dentro da cidade. Ruas com nomes de gente, de santos, de pedras. Becos cheios de mitologias. Travestis e prostitutas não disputam as calçadas: elas dão a vez, elas se protegem delas mesmas, como todos. De uma mão com centenas de mortes gravadas em sua epiderme cheirando a pólvora, mistura-se o dedo em riste para as ordens, o afago naqueles que elege para serem o seu “peixe”: confusa contradição, pois dessa cristalina dubiedade entre crime e afeto nasce uma lealdade que não trai, porque não precisa. Espaço de nudez espiritual em que ninguém ousa fingir que é o que não se é. É tão claro que incomoda e cega os olhares puritanos, e estes não resistem, não frequentam Copa.

Os nomes ficam para sempre. Uma vez dito, você é o peixe, você é o Chris, você é a Dolores; e se for o líder dos pequenos núcleos que se distribuem pela densidade do bairro, não importa a idade, vira o tio. Tio Adelson; Tio Tony. Seu Fernando; mas para os íntimos de ontem, Tio Fê. Amizades de infância nascem, em Copa, de um dia para o outro.

Ao lado da Rua Duvivier, numa travessa ao lado, com três minigarrafas pet do drink mais baixo clero, o Corote, passava o professor. O sabor artificial das bebidas, mesmo ruim em demasia, ajudava a suportar os goles sedentos de quem brindava com vinho de padre e só suportava adocicadas caipirinhas e mojitos. No bolso, aditivos para o fim do sofrimento.

Era um professor apenas; em Copa, vira personagem. Seus alívios para a eternidade, comprados na Siqueira Campos, são diluídos nas minipets de plástico barato, comprados na Banca Nossa Senhora. O professor bebe; ele tem gula incomum; sede sem fim pelo fim. Sem medo. Os multicores de Copa viram. Sabiam dele. Em Copa todos sabem de tudo a respeito de cada um.

Não se mata e não se morre em Copacabana por sorte ou azar. Quando vem, nunca parece que foi sem que seja hora e vez de quem foi.  Toda morte é crônica anunciada. O barco do Caronte, em Copa, tem brilho de bala, cheiro de pólvora, obediência de cão adestrado que só ladra ou morde quando lhe é permitido ou solicitado fazer. Nem uma ou sete tentativas de salto pro infinito podem dizimar o peito que infla de amor e não se encaixa por sentir demais. Para cada ato insano em Copa, um amor insuportável em suas delícias e dissabores reina absoluto e não lhe deixa fechar as cortinas.

Se no sertão Deus, quando vier, terá que vir armado, em Copa Ele, onipresente, está no rosto, nos bolsos, na luxúria, nas lascívias dos suores e peles morenas, brilhantes de suor e sol, salpicadas aqui e ali de areia da praia menosprezada pelos autóctones. Deus está nos corações que se protegem para um código particular de justiça. Deus está no peito e nas mentes que, até quando fazem o mal, agradecem a Deus por terem saído ilesos. Civilização e barbárie; beleza e caos; claro e escuro; leite e sangue; amor e ódio: aurora na estátua.

Quem em Copa vive, por uma vida ou por um tempo de sua vida, ganha um anexo à sua identidade. Depois de Copa você é um brasileiro, mas um brasileiro de Copa. Ou qualquer outra coisa, e mais, ainda: é de Copa.

Quando se nasce em um lugar, pertence-se a ele por força do destino. Quem renasce em outro lugar porque ele não lhe permitiu deixar de ser, porque ele o salvou, teimou com você e o suportou, repaginou, passa a pertencer a este lugar duas vezes mais. Ou, por que não, sete vezes, “sete vidas coloridas, avenidas para qualquer lugar”.

Disse o maranhense da Rua Duvivier: “a cidade é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém”. Copa é mais… mais, ainda. Singular. Carta primeira e única do baralho dos dias.

Copa. Ás de copa.