Rito memorial da noite: uma crônica paulistana

Rito memorial da noite: uma crônica paulistana

Atravessamos invictos a noite para encontrar a aurora, no instante em que voltam a viver os leiteiros entregues à pandemia e cujas bocas têm a cor da manhã, para ver que o inferno todo cabe no vazio do vão do MASP, onde toda esperança perdida nos sorri ou pede um cigarro.

Visitamos Ferreira Gullar e caminhamos pelas veias de Antônio Cândido, já que viver é não olhar muito para trás enquanto atentados e sentenças são proferidas. Enquanto mija, Dante examina a vida nos olhos de Virgílio e constatamos: somos peixes da noite.

Bethânia, a segunda maior recitadora de poemas dos Brasis, passa a esconder para sempre os segredos do antigo teatro, quando este existia. Minha língua se tornará um cristal e travestis dramaturgas irão rir de burgueses que escrevem sete livros. Saberemos ouvir a vitrola da noite e descobriremos como é possível desanalfabetizar o nosso peito.

Transamos em transe místico os nossos temas favoritos sete passos antes que entreis em minha morada, relembrando que às vezes ter na vida uma fugitiva, fechada a ferida e descartada a bala, é chance de buscar o tempo perdido contando uma bela história se perdendo nas páginas catalépticas da vida, e considerar que talvez amar seja ser um lago para a lua que alta brilha ou jogar fora a ritalina.

Esquecemos o caminho para casa, mas a estátua do Poeta — corroída pelo sal de tanta lágrima azul — também se esqueceu, e segue sorrindo e chorando de costas para o mar, que irá levá-la de volta pra casa, assim como quem esquece livros nos táxis, esquece os remédios com os amigos e depende da delicadeza de estranhos.

Juntos podemos reformar igrejas, pois há vinho em nossas xícaras de chá e, sabemos, os passos do flâneur não passam de palavras mágicas. Sabemos também que a humanidade de quem come diamantes deve ser a mesma daqueles que só querem viver em paz.

Me leva para sempre, Iolanda, ensina-me a debochar dos homens e dos cifrões, a quebrar a casa inteira repousando sempre na maior e mais inútil das riquezas, que nos sustenta e que disseminaremos pela elite e pelas favelas.

A literatura, tão inútil quanto insultar traficantes por amor e receber sua piedade em Copacabana, que acaba de invadir a Avenida Paulista.