Sobre o tempo e o espaço que nos molda: uma reflexão sobre a série Dark

Sobre o tempo e o espaço que nos molda: uma reflexão sobre a série Dark

A gente busca se entender no presente e então precisa enxergar e compreender o passado, o futuro a que nos dirigimos ou que acreditamos estar escrito e a nossa versão “e se”, com suas “expectativas” e suas motivações — geralmente no entorno de desejos, perdas e da “falta” constante que define a nossa existência. Embora o passado pareça fixo, quanto mais o encaramos, mais ele parece mudar para ser coerente com nossa versão do “agora”, com nossas lentes que melhoraram a percepção, ou pioraram a forma de captação de estímulos com aquela arrogância que os anos oferecem camuflada de experiência.

Quando você acha que entendeu tudo, precisa aceitar que cada face sua é dinâmica e depende da interação com o outro — e outros — e ainda se dá conta de que existem muitos “eus” “seus” e cada um é quase contraditório, invertido, um reflexo. Identidades espelhadas de algo que já fomos, que queríamos ser, que poderíamos ser ou que seremos, inclusive a versão do “e se eu nem existisse”. A história do navio de Teseu — figura da mitologia grega — imprime a incógnita do mistério da nossa identidade. Se um navio, como o de Teseu, partir de um jeito e ao longo de uma longa jornada for trocando todas as suas peças, suas velas, seu piso, sua carcaça, ainda seria o mesmo navio? Nós não trocamos literalmente nossas “peças”, mas nos transformamos tanto de um instante a outro que ainda somos os mesmos? Nós poderíamos alegar em alto e bom som que “nunca faríamos…” ou ainda que conhecemos melhor que ninguém nosso eu de ontem e o que ele pensaria diante dos desafios que não nos foi apresentado na linha temporal correta?

Cada um de nós enxerga tudo a seu redor com base em uma forma peculiar de ver e interpretar e concluir. Vivemos em mundos únicos e nos chocamos com os mundos dos outros, harmônica ou caoticamente. E nos chocamos com todas as nossas versões que deveriam estar sob nosso controle. 

Quando finalmente tudo (parece) faz (er) sentido, para o bem ou para o mal, e aceitamos que o que está feito está feito, que não podemos alterar o passado por mais célebres que sejamos, apenas a forma como o encaramos e isso vai modificar como nos afeta o ontem — mudando a forma como contamos essa história e de certa forma alteramos esse ontem relativamente a cada revisitada —, quando compreendemos que regidos pelo destino ou pelo nosso livre arbítrio — se é que existe — estamos condenando nosso futuro, determinando o amanhã com cada pequeno ato do hoje que se tornará depois, descobrimos que de nada significa toda essa epifania sem uma triangulação desses dados: sem uma terceira perspectiva, neutra, além da nossa restrita e da perspectiva também limitada daqueles envolvidos em nossa confusão chamada de vida, embolada e construída ao mesmo tempo com o presente incerto e imprevisível — que dura um instante, um segundo, um milésimo de segundo? —, com o passado (que é múltiplo, aqueles muitos que acreditamos ter acontecido se sobrepondo ao que de fato aconteceu), com o “e se”, com o futuro (também múltiplo, moldado por anseios, medos e, talvez, pelo destino ou pela simples reação a ações, que parece não estar pronto, mas nos aguarda), e com a interação com os outros.

Precisamos de alguém que nos ajude a ver o todo sem participar desse todo: a (o) psicoterapeuta? É uma das muitas opções. Talvez aquele amigo que conhece os detalhes que você contou para ele da situação em questão e supõe algumas omissões, além de relacionar com o que você já fez no passado, criando fluxos e juntando com as percepções de um outro naquela mesma história. Talvez essa pessoa que vai nos ajudar já fez isso, mas não estávamos prontos, o nosso “eu” não era aquele que conseguiria ouvir. Quando a gente se afasta é mais fácil enxergar que o nosso globo — para alguns apenas plano — é um pontinho pálido azul em silêncio e toda essa barulheira de interrogações e exclamações vem só da nossa cabeça, inclusive das vozes que conversam e gritam conosco e tentam nos dizer o que está acontecendo e como. Aquele cara que nos ajuda, profissional ou amigo, ou alguém que estava apenas no meio da batalha, como uma idosa perspicaz, e percebeu que precisava ajudar ou ia levar bala junto, num ciclo sem fim, não vai de fato fazer o que é necessário, vai aconselhar, direcionar, pois o drama é seu, é meu, é daquele “eu” centrado demais em si mesmo. Tem que ser nós. De alguma forma você precisa entender que tem o poder de definir o que existiu e o que pode continuar existindo, mesmo que essa definição não vá necessariamente destruir o mundo — não dos outros. Apenas o seu poderá chegar ao fim, para que um novo comece. Talvez seu mundo vá se colapsar ou seguir um caminho longe daquele Sol que brilha intensamente, mas que te queima, um caminho em que não seja tão necessário viver sempre visitando o passado ou o futuro, somente o presente, com toda relatividade e incerteza que ele oferece.

“Dark”, da Netflix, não é (só) sobre máquinas de viagens no tempo, é sobre vencer as barreiras do tempo e do espaço — que fazemos naturalmente e não nos damos conta —, é sobre existência, que só é mais uma das muitas palavras que inventamos e não teria qualquer valor sem nós para atribuir esse valor —, é sobre identidade — a nossa e a dos que nos cercam em constante transformação —, é sobre acessar e criar universos. Pare e pense em quantos mundos perfeitos e até distópicos já criou — só quando conheceu aquela pessoa que poderia ser “aquela pessoa” foram uma infinidade de possíveis realidades na sua cabeça —, quantas jornadas de heróis você amarrou aos traumas e às suas versões passadas que nem mesmo seriam descritas da mesma forma que você insiste em detalhar por qualquer outro que também testemunhou o momento. Alguns aspectos passados você só imaginou e os inúmeros “e se” de dimensões paralelas que te assombram e te fazem agir diferente, te fazem ousar, te fazer paralisar, ou mesmo te fazem repetir — tudo igual em loop — para evitar ou fugir do que pode ser muito bom ou muito ruim, tudo por causa de alguns medos que não são tão bem sustentados.

A série alemã causou furor por abordar o fim do mundo no ano de 2020. Uma data atípica, sem dúvidas, que está colocando um ponto final em muitas histórias. A maioria das pessoas está em casa, assistindo a vida por telas de computadores, celulares e tentando achar uma realidade melhor que a vivenciada em ficções disponíveis por plataformas de streaming, como a Netflix. O mundo já acabou muitas vezes e continua girando, ao redor do Sol, mesmo que muitos queiram discutir o heliocentrismo em pleno século 21. E que bom! As pessoas existem, também todas as suas faces distintas que montam um quebra-cabeça de um único ser, com o objetivo primordial de questionar. A existência de cada um faz sim diferença no complexo mecanismo do espaço e tempo.

Sem spoilers, embora houvessem inúmeros espalhados pela própria trama que não queriam complicar e nem surpreender, nos emocionamos com o fim. Tudo chega ao fim. Às vezes o fim é a morte e às vezes ela não é o fim de verdade. Quantas vezes já não tivemos que morrer para só então viver? Talvez estejamos todos em luto agora, negando, enraivecidos, tristes… tudo isso é emoção, que precede e procede aquelas mais bonitas: o amor, a paixão, que nos move, que nos faz realizar coisas aparentemente impossíveis, talvez ilógicas. Mas o que é o impossível além da palavra possível com um “im” na frente? Temos o poder de escrever do jeito que quisermos — inclusive o futuro e (pasme) o passado. “Dark” é sobre, acima de tudo, sentimentos e precisam ser sentidos em um tempo, em um espaço, pelo nosso eu, que não é mais aquele que já foi e não é aquele que se tornará. É aquele que pode amar e se o amor chegar ao fim, que seja contado quando pudermos — apenas de vez em quando —, visitar o passado ou o futuro, ou aquele “e se”!