Meu encontro com Aurélio Buarque de Holanda

Meu encontro com Aurélio Buarque de Holanda

26 de dezembro de 1977 foi uma data importante. A partir de então, algemas azinhavradas de puídas relações, esgares de desbotadas e ranhetas conjugalidades, persistindo sob o espectro de ervas daninhas, cantaram sua débil glória. A regulamentação do divórcio, pela lei 6515, sacramentou deste dia em diante a diluição de convívios decretados fantasmáticos. Ainda nesta data circulava nas bancas uma reportagem nascida do melífluo contato com o filólogo, tradutor, ensaísta e lexicógrafo mestre Aurélio Buarque de Holanda.

Logo de início, urge esclarecer que não nos interessava, na ocasião, a sinonímia, o esmiuçamento de termos, obedientemente sequenciados no imenso dicionário “Aurelião”, pai dos burros, como era denominado. Tampouco a radiográfica taxonomia, classificação das palavras em seu reduto gramatical.

Embevecia-nos, sim, o que desavisadamente escorria do agudo crivo do tamisador da língua pátria. Não havia, desde então, na nevrálgica e taquipsíquica repórter, cronista de agora, qualquer atratividade debruçada sobre as explicitudes da linguagem.

Nem sobre os holofotes do escrutínio, decodificadores plenos de significados órfãos. Sem dúvida, a motivação da entrevista com o emérito pesquisador residia nos silêncios das palavras. Suas preterintenções. Os bastidores das transparências.

A demanda desta matéria, portanto, corporificou-se durante uma reunião de pauta, com o querido editor Artur da Távola. Nasceu na imanência do indizível, dos franjados significantes daquilo que flutua, sombreia, escapa, voeja, por trás de frequentemente austeras e bem comportadas definições lexicográficas.

A alma das palavras

Metalinguagem. Uma refrescante brisa vem rodopiar no baile de substantivos, adjetivos e aparentados. O que não se encontra, afinal, num dicionário, por mais que se procure? A sensorialidade, languidez, sexualidade, ousadia, respiro de expressões, cuja fonética ou mesmo nuances das inflexões nos sugerem deliciosas imagens, signos que em nada correspondem às suas formalíssimas traduções.
Em vez de nos atermos ao rigor do idioma, segundo o qual a metalinguagem é o ponto aonde a linguagem se transforma num objeto para descrever a si mesma, decidimos enfileirar algumas palavras defronte à especularidade de espelhos.

É quando mestre Aurélio, se livra de sapatos e amarras, para discorrer sobre afetos que fogem de classificações tradicionais ou previsíveis, como o diabo foge da cruz.

Em fins de dezembro de 1977, no auge da ditadura, e um mês após o falecimento da indecifravelmente bela Clarice Lispector, declara-se — nesta mágica entrevista — a alforria de normas e grilhões da semântica e da sintaxe.

Aurélio confessou com olhos langorosos: as palavras para mim assemelham-se aos seres humanos. Apresentam forma, cor, cheiro. Elas têm alma, salientou. Escrever é uma perpétua metáfora, sublinhou entre seus cabelos brancos e a vasta biblioteca que o circundava.

Entusiasmados, o mestre e eu, com os quase infindos e libertários fluxos associativos, demos braços largos ao nosso nado, neste mar de inaugurações linguísticas. Fomos longe, bem longe juntos.

Palavras simpáticas, frias, tristes

A propósito, alguém dentre vocês se deteve, por instantes que fosse, nos humores próprios dos termos, sua TPM, ciclotimia, euforia e depressões? Há palavras sociáveis, antipáticas, fleumáticas, sensuais. Aquelas que percorrem nossos poros, deslizam nos braços e pernas anônimas, rodeiam devagar a tez convidativa de um rosto, o calor de recantos discretos, curvas dos ombros e as tenras dobras de joelhos.

Não há como esquecer, por exemplo, da fala contemplativa, imiscuída no imaginário de Aurélio Buarque de Holanda, inferindo metadenotações vinculadas à palavra libélula.

Esfregando os pés na areia do imponderável, o dicionarista divagava sobre o frágil inseto. Na libélula, asseverava, as consoantes parecem liquefazer-se, o termo induz oscilação, como se duas pétalas, delicadíssimas, pousassem sobre os pratos de uma pequenina balança.

As provocações prosseguiram. Perguntei se a partir de então poderíamos juntos desvelar o manto de alguns lamentos lexicais. Haverá palavra mais triste que murucututu? — ressaltou Aurélio, nesta íntima e promissora viagem linguística.

O que mais me obceca no termo — uma ave da Amazônia — ele prossegue, são as cinco sílabas compostas de uma mesma vogal, revestidas de um milagre da invenção verbal. Murucututu nos remetia a um gemido, prolongado interminavelmente.

Deixando a tristeza de lado, resolvemos abrir as janelas do amanhecer, nesta tão filigranada conversa. Eis que chega a alvorada — palavra que o mestre apontou como uma das mais bonitas do nosso idioma. A boca se abre inteira, apresentando a profusão de “as” contidas em alvorada, concluímos.

A uma única palavra conseguimos associar inúmeras ideias conforme o contexto apresentado. Um professor pernambucano, Antônio Feliciano de Castilho ocupou-se, por exemplo, da organização de um livro exclusivamente composto por onomatopeias e interjeições.

Para o professor Antônio as vogais assumem conotações emocionais. O “A” seria alegre, o “I” e “U” cabisbaixos e assim sucessivamente. Porém, uma advertência, as palavras lírio e veludo não contêm tristeza alguma, advertiu o mestre Aurélio. Nos dias de hoje, eu pondero, entretecida com novas ilações: quanto de perfume envolve o lírio e as malícias da maciez que abraçam o veludo?

A insustentável feiura de certas palavras

Sisudez, antipatia, sensaboria. Voltamos os olhos para o pescoço. Que tal substituí-lo por colo, sem, entretanto, mesclarmos o colo ao regaço?

Partimos a seguir para a elegância dos termos, quase ao final de nossa entrevista. Veia — palavra antiestética. Osso, palavra sem cor. A dura e impassível frieza da cadeira, parede e mesa. Não há discordâncias.

O êxtase de nossa conversa foi regado a uvas e licor, oferecidas pelo nosso mestre. Depois do saborosíssimo banquete verbal, claro, só nos restava brindar o prazer de termos dissecado com calma, em mais de duas horas de intercâmbio, as possibilidades recônditas na língua mãe.

Antes contudo da despedida, Aurélio me surpreende com um presente — sua tradução de “Flores do Mal” do poeta Baudelaire.

Confesso — levei junto ao coração as especiarias contidas na dedicatória “Para Graça Trindade Cruz (meu sobrenome à época) tão cariciosamente leve, apesar da dureza relativa do seu nome. Seu amigo e admirador, Aurélio”.