Preparando para o novo normal nos prostíbulos

Preparando para o novo normal nos prostíbulos

Dirigia o meu carro velho para renovar as ideias. Paradigmas são arruelas enferrujadas que só atravancam a mente da gente. Assim como eu, as ruas estavam vazias. Cheia de se explicar para a mídia, cansada de encaçapar contribuintes e de ensacá-los em plástico-bolha, a prefeitura decretou o confinamento dos cidadãos. O povo estava proibido de sair de casa, ainda que fosse para matar a saudade de ser trouxa. O medo de bater as botas era um sentimento compartilhado, era um mantra recitado à exaustão, algo que ia passando de pessoa para pessoa, que nem peste, que nem cobreiro, num verdadeiro efeito rebanho. Da pior maneira possível, sentíamos no coração o que sentia o gado no matadouro. O que seria a vida senão participar de uma fila indiana para lugar nenhum?

Queria dar um tiro de festim no filósofo. Os cenários político, socioeconômico e sanitário estavam tétricos. Não faltavam opiniões deploráveis para testar a paciência e a sanidade mental das pessoas. Ninguém se entendia. “É preciso parar de morrer gente, gente”, conclamava o embalsamado prefeito, confuso, durante mais um dos seus surtos psicografados. Não via os meus pais fazia semanas. Suas vozes débeis e calmas pelo telefone já não me traziam tanto alento. Alguns diziam que, de tanta indiferença, eu mais parecia um homem-de-gelo, um maldito iceberg afundado no caos diuturno.

Fato era que eu estava boiando à deriva, um homem-merda, isso sim, à beira de um ataque de nervos. Tinha lá as minhas reservas quanto àquele tipo de gente que dava piti ao perder as estribeiras. Urgia ter classe e bom gosto para adentrar a espiral do desespero. Era péssimo quando o descontrole emocional virava um show de horrores. Toda aquela honorável resignação dos meus pais só aumentava o meu drama. Faltava-me, obviamente, o jogo de cintura, a vivência necessária para também relevar o medo de morrer e, mais do que isso, o receio de afogar no seco como um peixe. Passei a ter aversão à cloroquina, à ivermectina, aos boletins epidemiológicos da happy hour e às pescarias no pantanal, desde que descobri em mim a asma e o vício da solitude.

Muito antes do que eu supunha, eu tinha a impressão de que o ser humano voltaria ao status subaquático, rebobinando a fita evolutiva até um período em que fomos — é o que dizem — amebas. Amebas assustadas. Amebas sonhadoras. Amebas altruístas. Amebas mandrionas, imbuídas tão somente na mera replicação celular. As metas de perpetuação da espécie nem sempre vigoravam. Milênios se passaram até que perdêssemos a cauda e a capacidade inata de respirar dentro da água. Quem sabe, acuados por micróbios agnósticos apavorantes, faríamos, finalmente, o caminho inverso, retrocedendo ao brejo das almas, à insignificante lama original de onde, quem sabe, nem deveríamos ter saído. Andar sobre duas pernas foi um erro crasso.

A expectativa pela hora do apocalipse era algo que me deixava fulo. Fazia séculos que a humanidade esperava o fim do mundo. Um saco ter que esperar tanto tempo. Nenhum motorista cruzava o meu caminho para tomar uma buzinada nos cornos. A falta de pressa deu-me tempo suficiente para ler os versos que alguém tinha pichado num muro. A ortografia estava ótima, melhor que a do Ministro da Educação. Senti aquela familiar suavidade de volta. Tive uma vontade danada urinar, de derrubar o governo, de secar uma garrafa de Cuspe Sour com cacos de estalactite. No fundo, eu esperava que o diligente pessoal do Departamento de Códigos e Posturas não fizesse o desfavor, não tivesse a descompostura de apagar com cal tais palavras inspiradoras. Os poetas não mereciam ser multados. O delírio criativo é um atributo raro. Ademais, os melhores poetas sempre foram quebrados, nunca tiveram cacife financeiro para pagar a saideira, quem dirá, multas homéricas por terem descortinado verdades que pinicam. Seriam versos do Leminski? Pesquisaria no Google, assim que a gasolina acabasse.

“Acabou chorare” era mesmo um álbum bom-pra-cacete. Acabei chorando. Bateu uma melancolia assim sem saída. Tocava “A menina dança”. Podia enxergar a Baby Consuelo dançando faceira, com requebros e sovacos cabeludos, sobre o capô do Lamborghini que nunca tive, transbordando juventude, vitalidade e psicodelia. Parecíamos, então, metidos num daqueles filmes incompreensíveis do Godard, padecendo de um estado de conservação física meia-sola: eu, a Baby, o Pepeu e o resto dos Novos Baianos.

Dentre tantas lembranças que surgiam, relances de uma vida pregressa reconhecida como “normal”, senti saudade dos erros de avaliação, das irrelevâncias, dos saraus de poesia, da bola rolando na grama e das dançarinas de pole dance escorregando nuas em tubos metálicos de 5 polegadas perante um rol de rolas fumegantes. Saudade das bocetas amigas, dos amigos-da-onça e das canções de mau gosto que tocavam nos churrascos da laje. Saudade das passeatas contra o governo, da agenda de trabalho apertada, da falta de tempo para estar com as pessoas e fazer o que tinha vontade. Saudade da vida se deteriorando louca e rapidamente, sem que a gente se desse conta. Sei lá. A pandemia deixava as pessoas num estado emocional sensível demais.