Luiz Gama, a história do poeta e advogado que foi escravizado pelo pai e virou patrono da abolição

Luiz Gama, a história do poeta e advogado que foi escravizado pelo pai e virou patrono da abolição

É curioso começar uma história pelo seu final. Contudo, em se tratando da figura central deste enredo, nada mais justo do que o calor da grande homenagem em torno de seu partir para demonstrar o que fora em vida. Morrera em 24 de agosto de 1882. Milhares de pessoas acompanharam o seu velório, consternadas, com notas de pesares rendidas em jornais e revistas. Na homenagem voluntária de sua passagem, relata-se a presença sincrética de escravocratas e “pobres negros esfarrapados”. Estaria presente também o Conde de Três Rios, a mais alta autoridade de São Paulo, vice-presidente em exercício da província. Nada era por acaso na ocasião: ali estava findando a história de Luiz Gonzaga Pinto da Gama, negro, baiano e gigantesca figura brasileira esquecida nas páginas da história.

Sua trajetória de vida é relatada de punho próprio. Em carta a Lúcio de Mendonça, redator do “Almanaque Literário”, Luiz descreveu sua mãe, Luiza Mahin, como uma africana livre, de Costa Mina, geniosa e vingativa que fora presa mais de uma vez por se insurgir contra a escravidão. Seu pai fora um homem que alcançou a riqueza, mas, pródigo, tudo perdeu e acabou por vender o próprio filho, criança livre e filho de mulher liberta, então com 10 anos, como escravo. Luiz, chegado de um navio com outros aprisionados, fora posteriormente vendido a um contrabandista, momento em que fizera uma inacreditável viagem a pé de Santos até Campinas.

Nesse momento inicial da vida, uma curiosidade: o relato sobre a recusa dos compradores de escravos em querê-lo pelo fato de ser baiano. Era a pecha para algo ruim; daquelas coisas elencadas dentre as imprestáveis, ao que parece uma tradição mantida, perpétua e hereditária — até os modernos dias. Apesar disso, fora comprado e aprendeu a ser sapateiro, copeiro e lavador. Fugira da casa onde vivia e fora servir ao exército por seis anos, chegando ao posto de cabo e sendo preso por insubordinação. Fora também escrivão, mas posteriormente demitido “a bem do serviço público” pelos conservadores que chegaram ao poder por ser “turbulento e sadicioso”. Tudo por conta de sua inquietude pela justiça para com os seus pares.

Em sua vida, Luiz Gama fora jornalista, professor, advogado, líder político, maçom, poeta, mas, principalmente, abolicionista. Era, portanto, um corpo estranho em um país de analfabetos e escravocratas em franca ebulição. Por ser autodidata, tornou-se rábula — atribuição pejorativa para um advogado legitimado pelo robusto conhecimento jurídico que podia exercer a profissão. Utilizava-se da posição na sociedade para ruir e subverter, muitas vezes por intermédio da sátira e do riso, as estruturas de poder de sua época. Como jornalista, conduzia denúncias diversas aos reclames cotidianos pelo seu viés liberal. Na área jurídica, atuava na consecução das liberdades como justiça social por alforrias e ações judiciais às centenas.

Dentre as concepções de Luiz Gama, há também o legado da formação sem a necessária frequência à Academia. Utilizando de suas próprias palavras, para ele “a inteligência repele os diplomas como Deus repele a escravidão”. É imaginável o que um negro do quilate intelectual de Luiz Gama deva ter sofrido de preconceito racial ao digladiar dentre os teóricos do espaço acadêmico, apesar dos parcos relatos sobre tais situações, mas dado o contexto histórico e a sua luta pela liberdade. A questão da liberdade, por sinal, até mesmo por ter ele um dia sido objeto/coisa, foi a mais eloquente das bandeiras das tantas façanhas de Luiz Gama contra o sistema escravocrata de sua época.

Luiz Gama foi um gauche. Ocupou espaços, superou a opressão sistemática, batalhou em meio ao improvável e exerceu sua primaz militância para a integração dos negros aprisionados em tempos de escravidão. Fora o baluarte da incipiente revolução ante a cristalizada dinâmica reacionária dos processos paulatinos abolicionistas. Em tempos de usurpação de biografias, é imperioso pontuar que isso nada tem a ver com meritocracia; ao contrário, é a exceção consciente em estado bruto do pioneirismo antideterminista, apesar dos muitos pesares. Um legado ético no combate a desigualdades históricas, que até hoje deixam rastros cruéis. Viva a Luiz Gama, um imortal colosso representativo de nossa história.